Thursday, July 31, 2008

Uma seara de mel de rosmaninho

Sou o ultimo dos seareiros do campo. Já os homens do cereal estão no descanso, acabada a debulha das muito reles searas da serra de Mértola. E eu ainda aqui ando, no esbulho da minha seara de mel. Comecei bem, em bom ritmo, mas as saídas são de sendeiro. Há muito que fazer, que sentir neste meu verão, para além da via sacra do calor, enfarpelado em roupa, em picadelas, a praguejar por estes barrancos . Mas está quase, faltam três sessões de cresta para arrumar a questão.
Depois começa o mais engenhoso, vender as minhas dez toneladas de mel a bom preço, com elegancia, garbo, e vaidade na conta certa. É esta a minha seara.

Wednesday, July 30, 2008

no antes

O meu Cabo da Roca és tu. São praias ocidentais ao coração, praias de maresia e espanto
ainda no antes não te sabia o sal todo
o iodo

Friday, July 25, 2008

A bufarda

Dá dó lá entrar, presenciar a agonia de um lugar aonde um dia um homem construiu um mundo. O pasto seco estala ao sol do meio dia, visão impossivel nos seus tempos de homem épico.
Chamava-se João José Barros, um dos muitos filhos de um cantoneiro de Monte Trigo, e era o ultimo dos neo-realistas da vida que conheci.
Fez de tudo um pouco, arrancou arvores de empreitada, trabalho ciclópico para arranjar campo de cereal como mandava Salazar, fez telha e lambazes num telheiro, carvão nos fornos, empreiteiro de ceifas, tudo fez para enganar a fome aos filhos. Um dia largou a serra de Portel, aonde era uma espécie de personagem de Cerromaior, e procurou as oportunidades da cidade . Arrendou a quinta da bufarda, que mais não tinha que uma casa modesta, um poço e umas oliveiras esparsas, aonde reinou por cinquenta anos. De dia era jornaleiro na quinta de um doutor e a ver os outros, aprendeu o engenho do oficio de quintaneiro, de noite praticava na bufarda, ao luar, ou alumiado pela lanterna que a mulher segurava. Inteligente, depressa aprendeu os segredos da quinta, amaciou as terras a poder de esterco e aiveca, plantou centenas de oliveiras que regou a balde, abriu um poço, construiu toda a espécie de cómodos para os animais, bem como no final da vida uma casa de banho digna do nome.
As suas mãos grandes de semeador, faziam milagres naquelas terras e estou a vê-lo carregar pela tardinha a carroça, com molhos de nabiças, beldroegas, espinafres e coentros, atados com a junça que apanhava nos valados, salpicá-los de água pra beberem o fresco, e partir pelas quatro da manhã, alumiado por um lampião de petróleo, estrada fora direito ao mercado de Évora, aonde ao nascer do dia todos os quintaneiros das quintas, chegavam nas suas carroças ronceiras, para fazer negócio . Esta volta durou anos, e com ela criou os filhos. Depois o ultimo dos rapazes casou e a estratégia teve que mudar.
Não deixaria a mulher noite escura, sózinha naquele ermo, sem nenhum homem a garantir-lhe a segurança, ainda assim não aparecessem alguns gaiatões a quererem fazer pouco dela.
Começou assim a época das suas grandes searas. A saber, o pimentão que ele tratava desde o criadouro nos alvores da primavera, depois muitos e grandes canteiros de terra milimetricamente armada para a rega, sem recurso a corda de nível, simplesmente a olho, aonde dispunha as plantas, grandes sorvedouras de horas de rega pelas canículas. Depois era colhê-lo, cortá-lo, salgá-lo e nos frios do inverno moê-lo, acondicioná-lo e levá-lo ao destino nos talhos para tempero das carnes. Tal industria não seria possivel no desvario dos dias de hoje, logo uma qualquer inteligencia das ASAE, viria destruir a vida a este homem, sem ponta de remorso.
Depois havia os batatais, e as suas toneladas de batatas encheram a barriga a muita gente nos restaurantes de Évora, que ele fornecia de bicicleta, levando uma saca de cada vez. Os perus criados pelos filhos nos restolhos, eram o subsidio de natal. O azeite de que ele colhia centenas de litros por ano, era traspassiado porta a porta em garrafões improvisados, e dos clientes se despedia com um "Saúde para o comer!"
Teria que ser o pâncreas a levar este homem visceral e de emoções destemperadas. As suas cóleras eram temíveis, que o digam os filhos e os animais. O que quer que lhe não obedecesse, provava o gosto das fueiradas no lombo até se humildar, e até o Júlio do Abade, que era fraca rez, um belo dia, sentiu a zunida de um machado ao rés das orelhas ,quando passou em dia aziago, buzinando ao portão da bufarda, o que foi entendido como andar a fazer pouco.
Parece que ainda lhe vejo a silhueta mourisca, com um pano por baixo do chapeu de feltro preto, empapando o suor, a lavrar em diálogo com o besto:
-Ao rego!
Estalava com a lingua em incentivo, e tornava
-Aíii! mula de um real cabrão que anda folgada....

Wednesday, July 23, 2008

O corpo no verão

O corpo sabe bem o que quer e tem as suas horas.
Acompanho o ritmo do sul, em que as vilas e aldeias bulem pela manhã, é quando se vê gente na rua. Lá pelas onze horas, começa a deserção para as casas, para lá da cal e da taipa está o refugio. O sol não perdoa e a rua torna-se um deserto pelo meio dia.
Entre as minhas paredes, o almoço é o ultimo acto. O corpinho pede para contemplar os sonhos e a cabeça faz-lhe o geito. Lá pelas cinco, há um novo ameaço de actividade, que se desenvolve pelo cair do dia. Chega a noite e apetece estar a começar.

Tuesday, July 22, 2008

A minha busca do Sul

Ontem acordei na praia enevoada e depressa cheguei às canículas interiores. Tudo corre rápido, a transposição dos quilómetros, como do clima, como a das emoções, são marcas dos meus dias que correm.
Hoje dou comigo especado no mato seco, em corpo, mas ainda no ontem que me importa, aquele em que saí dos arredores da felicidade, do teu riso, e ainda não sei bem para onde vou. Mas sei que estarás lá.

Monday, July 21, 2008

Postal

Venho dos teus braços, desse teu sorriso instantaneo nascedio nos olhos, caminho directo, vereda apontada à perfeição. Venho e vou.

Friday, July 18, 2008

Uma incomodidade de carácter

Nunca ficarei conhecido pela qualidade nem rapidez da minha lucidez.
Nas inquietações do coração, demoro a entender o óbvio que já todos viram, ou, pior, demoro a querer ver a realidade. Esta lentidão de entendimento, por vezes vizinha da burrificação, é mesmo uma tramação do meu carácter. Mas com o tempo a coisa vai lá....

Thursday, July 17, 2008

Significância

O luar será mais redondo contigo por perto. Ainda assim é sempre belo, respondes tu.
O meu monólogo contigo, devagar devagarinho, começa a parecer um diálogo entre a tua comedida prudência e a aventura de te procurar. Eis uma pequena significância.

Wednesday, July 16, 2008

Outras praias da minha vida

A época, os apetites solares, continuam a puxar o assunto balnear. Assim percorro as minhas praias, as praias da minha vida.
Aos vinte anos, minha tardia adolescência, proclamei abolidos os calções de banho para todo o sempre, glorificada a nudez universal. Passei a escolher as praias pela naturalidade da minha exposição solar e a ostentar ostensivo desprezo por todas aquelas, quase todas, praias familiares, que me não permitiam o completo desfrute do corpo e do sol.
Nessa cruzada, fui parar à costa sudoeste em tempos de alegre libertinagem, ali para o castelejo ou para a cordoana, perto de Sagres, praias que cheiram a esteva, inspiradoras de qualquer putativo apicultor. Aí perdido do real, sonhava com os dias do devir.
Também Odeceixe marcou uma época, quando do lado alentejano da ribeira, uma comunidade hirsuta montava arraiais com tendas, música da Nina Hagen e dos Sex Pistols aos repelões, alemoas de nádegas rosadas, charros flamejantes, strips espontâneos em cima das mesas de um bar improvisado, e um alemão maneta e grande como um pedregulho, que na sua carrinha improvisava umas pizzas deliciosas, em flagrante delito de lesa ASAE.
Depois, mais tolerante ao têxtil, redescobri o Algarve, a praia de Albandeira em Lagoa, a ilha de Tavira e mais recentemente o Barril, que todos os jovens príncipes apreciam pelo comboio ronçeiro que acede à praia. E sempre que posso, embora não de modo tão religioso, lá vou soltar o corpo, atirar o calção de banho para bem longe, na praia nudista de Porto Côvo, aonde se pode andar nu e ser feliz até à epiderme.

Tropicação

Quer eu vá como vendedor de frascos de mel ou, afreguesado, em passeio, há em Porto Côvo um lugar obrigatório, o Júlio e a sua Tropicação. Não há cliente com mais bonita lidação do que o Júlio. Está na rota do prazer da venda. E isto porque ele só é negligé no vestir, o que para mim, informal fornecedor, até pode ser um sinal exterior de brilhantismo.
A loja, o Mini-Mercado Tropicação, é um mimo para as compras. Tem o essencial que qualquer veraneante busca, mais o requinte que ele faz questão que seja a menina dos olhos do seu estabelecimento. Ele não é um qualquer merceeiro, conhece exactamente o que vende e procura ter coisas especiais , para além das banais que é necessário ter. E depois como fornecedor, há sempre um bocadinho de prosa bom, para além da tradicional choraminguice muito mourisca que acha que o negócio não é digno sem algum regateio, alguns arrufos comerciais, e eu lá faço o desconto somítico que posso fazer, atendendo à honra de ali estar. Afinal, tenho orgulho de ver os meus frascos de mel nas suas prateleiras. Tamanha honra merece bem uma fineza.

Tuesday, July 15, 2008

Homem tépido

O cheiro do mato desce da serra e baloiça ao vento por entre a taipa das casas. O calor nocturno faz de mim homem tépido, de impressões vivas.
Ainda há dias sonhei contigo, a dormir, um sonho companheiro, hoje vejo-me acordado a sonhar.
Um sonho simples, termos as mãos livres para o inventário da flor da pele, do aroma da liberdade de passear pela noite a decifrar os noitibós, os passos no restolho, as cidades luminosas que nunca me contaste.
Esta noite eu ficava assim a olhar para ti, a ouvir-te ou a deixar falar o silencio. Ficava mudo e quedo, apenas as mãos seareiras à espreita do sossego das tuas.

Ops!

Estou mesmo aí. De olhos abertos para o regresso da política.

Monday, July 14, 2008

A minha praia

A hoje insuportável e corriqueira praia de Albufeira foi um idílio da minha infância.
O campo genuíno começava nas traseiras da casa, aonde cabras pastavam em tufos de alfazema, o esqueleto de um moinho de vento ainda se levantava, e as cigarras compunham ao azul celeste.
O meu pai era o meu grande parceiro dessas jornadas, como o sou hoje com o meu filho José Mário, outro incansável das praias.
Descíamos a butes do Cerro grande para a praia, nesse tempo ainda não demasiado povoada. Foi o tempo de lhe conhecer os rochedos um por um, de me entender anfíbio naquela agua cálida aonde se passava um dia inteiro no entra e sai, entre o sol e o mar. Ali se me entendeu aquele estar especifico da praia, muito nosso, nas vagas de fundo das ondas, estão aquelas marés vivas da alma que nos levam para longe dali, para a liquidez oceânica do olhar, cismando e perdendo o fio aos desejos de sonhar.
Assim se passaram dias que não sei agora segurar, assim fui ganhando ar e alturas nessa presença física da areia, a entender o silencio do pai, um silencio que se confundia com as ondas e partia atrás de caravelas, talvez de um sorriso de mulher, do piar das gaivotas.
Com ele, a sua embriaguez de mar e palavras medidas, ficou escrito na areia o meu destino.

Sunday, July 13, 2008

Praia do Gancho

A música chegava das dunas sem se perceber de onde. Entrava na lassidão da vontade de me mexer e dava pequenas picadinhas. Era um etno jazz qualquer, mas do bom. Os meus capitães da areia foram os primeiros a seguir esse canto de sereia e sairam-me do campo de visão pelas dunas. Fui ver então que sítio misterioso seria esse. Assim descobri um lugar de segredo, com bar, pufs na areia, bebida, boa música e pouca gente mas bem disposta, a puxar à dança. Praia do Gancho, perto de Monte Gordo que se pensaria entregue aos pategos. Os meus filhos já me vão descobrindo coisas boas da vida....

Saturday, July 12, 2008

Ir ao mar

Hoje o amanhecer chegou com uma falta qualquer ainda por identificar. Talvez esteja a nascer uma inquietação, um qualquer vazio de plenitude. Já não estava habituado a não sentir os dias todos como plenos e acordei estranhado.
É hora de ir a caminho da maresia, de pousar os olhos nos principes encantados aqui de casa, nos seus castelos de areia. E no final trazer o sal.

Friday, July 11, 2008

Admirável mundo novo

Talvez esteja para nascer um mundo novo.
Após centenas de medidas gravosas, ou à melhor irrelevantes, vi finalmente uma coisa positiva, geradora de futuro, na obra deste governo: o acordo com o consórcio Renault/Nissan para a implementação do carro eléctrico.
Não faltarão uns cavernícolas a dizer que foi mais um favor do governo às grandes empresas, mas aqui finalmente, vejo alguma visão de futuro, que só acho espantoso ainda ninguém o ter visto antes. O problema são sempre os entretantos, partimos com anos de atraso, e pelo menos três, iremos esperar até ver os primeiros carros eléctricos que nos vão salvar da dependencia do petróleo. Até lá teremos que nos aguentar, sobreviver ao que falta vir.
Quem sabe se um dia haverá carros movidos a energia solar ou outras maravilhas que permitam circular com energia infinita, limpa e gratuita. Finalmente uma hora de optimismo, um dia do futuro. Estávamos disto precisados.

Thursday, July 10, 2008

Contra G8 antes G3

Quanto mais velho, mais penso que isto não está para sociais democracias e outros paninhos quentes. Hoje reparei nos vinte e quatro pratos postos na mesa do senhores do mundo, sentados na reunião do G8, a discutirem, entre outros assuntos, a fome dos miseráveis. Lá diz o Saias:

Contra G8, só G3

cá pra mim, aquilo que eu acho ,
o mundo está dividido:

metade em busca de tacho
outra de pão e de abrigo

Podem ir ler ao http://evoracafeportugal.blogspot.com/

A sede da Sedes

Os senhores da Sedes, uma agremiação de senhores barrigudos, bem estimados pela vida e pelo centrão, veio a terreiro insurgir-se contra a deriva eleitoralista do governo, que se devia empertigar em sangrar mais um pouco os desgraçados, que não estão suficientemente desempregados, nem explorados o" qu´il faut", logo é preciso cortar na boa vai ela que para aí vai.
E eu a ouvi-los e a lamentar que não haja eleições todos os anos.

Wednesday, July 09, 2008

Vascanito

Hoje a cresta atirou-me lá para os lados do Caldeirão, para perto do Vascanito.
A Ribeira do Vascão, corre da serra para o Guadiana, e quando andamos para as nascentes, torna-se um vascanito em bom falar serrano. E foi assim que após a calorina de uma colheita paupérrima, tive o prémio de molhar os pés na ribeira, à sombra do freixo, ouvindo o rouxinol e o trautear de um motor de rega ao longe a lembrar-me das minhas hortas passadas e das vindouras, lá para os anos da reforma. E assim fiquei uns cinco minutos esquecidos, a gozar o prazer da respiração.

Crepusculo

Já lá vai a estrela solar por estes cerros do fim do mundo. Já as perdizes se calaram e os noitibós aterraram no pó dos caminhos. Enquanto o contorno das serras perde o vermelhão do poente, a escuridão avança apressada, deixo-me estar no apiário até à indefinição dos contornos da vida circundante. Agora começa a hora das estrelas, a hora em que as emoções descem à epiderme.
Hora de te sonhar, de inventar todas as palavras com que falas para cassiopeia.

Tuesday, July 08, 2008

Para lá de Campo de Ourique

O meu GPS emocional já há muito que lhe achava a falta e desatou a apitar. O apito soou-lhe no telemóvel em forma de convite para uns copos, com ou sem caracóis.
A minha amiga Joana anuncia-se como uma beta de esquerda. Longe de mim querer retirar tal título honorífico, mas acho que só os incautos ao ouvi-la, lhe colam a geografia, algures entre a Lapa e o Bairro Azul. Os mais avisados, sabem que ela está muito para lá de Campo de Ourique.
Mas a nossa rota levou-nos ao jardim do adamastor, e lá plantados a ver os barcos no rio, imperial por imperial, quartos de hora voadores a puxarem pelo paleio e pelo riso, como se a nossa ausencia fosse apenas de ontem.
Tanto eu gosto de lhe seduzir o riso, o olhar pousado, que há sempre alguém que pergunta se nos namoramos, mas temos a resposta na ponta da lingua, não, já nos conhecemos há treze anos. E deliciados com este cabo da vida, lá vamos de braço dado.

Sunday, July 06, 2008

O apito encarnado

Começo por explicar que não sou adepto portista, que a figura do major Valentão sempre me foi insuportável, mas já o Pinto da Costa sempre o considerei um humorista muito superior aos Gato Fedorento.
Mas alguém me explicará a mim, que serei burrinho mas não entendo, esta história do apito encarnado, perdão, dourado?
Como podem os organismos disciplinares do desporto, do futebol, aplicar castigos ao Boavista, ao FCP, a Pinto da Costa, por acusações que ainda transitam em justiça, se ainda não houve condenação em julgamento, logo estão por provar todas as acusações que lhes foram imputadas, e os supostos crimes até ver são ficção.
O que acontecerá se os tribunais concluirem pela inexistência de prova incriminatória convincente?
Ou será, porventura por ficção, que estamos perante u m caso de corrupção desportiva, por parte de um clube ansioso por ganhar na secretaria o que não conseguiu no jogo jogado ?

Saturday, July 05, 2008

O capitalismo de Pétar

Na floresta mágica dos sobreiros, havia uns vizinhos muito particulares.
Era uma comunidade anarquista de alemães e alemoas, saltatitavam de rabos alçados pelo meio da vegetação das suas vidas. Eram económicos nas expressões, e o unico a quem se lhe podia ver os dentes, embora devagar, era o Pétar.
Este muito vagaroso homem, era um cristo teutónico, muito louro, cabelo comprido escorrido, cara comprida e grande nariz, era tal qual o crucificado em versão loura. Tinha uma ocupação que eu reconhecia, a sua horta no fundo do barranco, aonde cheirava a raposum, entre urgueiras e pés de marijuana avulsos.
A propriedade consisitia, à maior, em cerca de um metro quadrado, aonde vegetavam três rabanetes, uma alface, duas nabiças e mais algumas ralas unidades hortícolas. Ali levava ele as tardes da eternidade, regando, esperando o nascimento de alguma erva daninha e vendo crescer. Tinha um olhar húmido, parado numa qualquer trip mal digerida, para lá do Everest. A sua vida parou naqueles fundos de natureza brava, talvez a ver crescer. Aceitei como uma imensa condescendência a visita àquele jardim do fim dos tempos.
Mas a coisa não durou.
Os seus companheiros de rosto fechado, uns meros aparatchiks libertários, moveram-lhe o mais insidioso dos processos de intenção.Ele Pétar, estava rendido às pulsões do capitalismo infernal, era proprietário possidónio de algumas hortaliças e logo lhe mostraram o caminho de saída ao sonho da liberdade.
Anos mais tarde, voltei a encontrar Pétar numa Fatacil, não me reconheceu, mas era ele já sem ar de jesus das neves, enfarpelado num fato cinzento e com ar de consumista indestinto.

Friday, July 04, 2008

Levantar por dentro

Acrescenta Simão Bravo, a propósito dos seus tombos:
- Às vezes caio e não me levanto por fora, mas levanto-me por dentro.

Íngrid Betancourt

Enfim, bem aparecida!

Thursday, July 03, 2008

O refresco

É um homem de mão cheia que parece não existir a não ser em filmes.
Fui desafiá-lo à Quinta da Fornalha para um refresco cá dos nossos. Estava de posse de uma vedação, sob a solina vagamente temperada pela brisa. Blusa de cavas como de costume, ninguém diria que estamos perante um aristocrata de berço, agricultor por devoção, que largou os catrapázios de história, os corredores académicos e escolheu a licenciatura vivente do campo, por amor à veia criadora.
Combinámos o tal do gin tónico ao poente, na tal praia, enfim o "refresco". Fui á frente para o desfrute das ondas e da maresia. Ao sol posto ele lá estava, já de posse do copázio.
Começamos a falar das ninharias que importam ao bolso. Os clientes, os porreiros e os filhos da puta, os figos lampos, a sua flor de sal, o meu mel, do que faremos os dois em parceria com mel e iogurtes biológicos. Falamos do prazer de fazer bem feito, não pela mania da pureza, mas porque somos homens de garbo. Fiquei a saber que tem costela de Mértola, terratenentes rurais mas longinquos, nada mais natural num aristocrata da conversa, depois a História, outro prazer que nos une, que bom contador da "petite histoire" ele é, conto-lhe como dou a volta a Portugal, a volta ao mundo, a contar a História aos meus filhos em viagens reais e outras imaginárias. E arranco-lhe gargalhadas lá para diante no Gin Tonico.
Tem fama de homem dificil, mas para mim é simples, ou gosta ou não gosta das gentes que se lhe cruzam, como eu, detesta os presumidos a quem faz o favor de por rapidamente a milhas terrestres. Quando virem no Corte Inglés e outros que tais, os iogurtes biológicos da Quinta da Fornalha, do Jacinto Palma Dias, saberão que por trás deles está a mão tisnada desde algarvio invulgar e inqualificável.

Sem espinhas

Hoje já pouco penso em ti, mas ainda há dias me habitavas em carne viva, parece curto, mas é assim o meu sentido extremo da sobrevivência emocional. Nisto tenho sete fôlegos, ainda andava nas verduras da adolescência, quando caí no caldeirão fervente dos amores inviáveis. Nesses tenros anos demorei a vir à tona, trazendo a descoberta do antídoto que me afasta do precipício.
Mas por vezes distraio-me e o edificio abana.
Quando te voltar a ver, estarei outro sendo o mesmo, e para isso, em nenhum momento, precisei de te renegar, ou de deixar de achar que estivémos sempre bem no retrato.
Vou ver-te com os olhos limpidos dos dias bons e sei que os trabalhos, as conversas, recomeçam no exacto lugar em que ficaram pendentes.
Sem espinhas nem merdas.

Wednesday, July 02, 2008

A casa crua

Esta noite voltei ali, no mais recorrente dos meus sonhos. Não percebo estes encontros com um lugar aonde não fui particularmente feliz nem infeliz.
O sítio é uma casa na serra de Grândola, a boavista assim se chama, num alto batido do vento, com o mar à vista, a Arrábida visivel em dias de atmosfera lavada e rodeada de uma floresta de sobreiros, uma floresta mágica habitada por corujas e matos de rosmaninho e vivida de boas presenças.
Aluguei-a ao Estragildo, um homem com perfil de lua minguante, que ainda calcorreava as veredas da serra, de carroça e macho. Foi a casa mais zen da minha vida, de tão pouca coisa que lá me acompanhou a mascarar o vazio. Era de taipa , não havia luz e a água penava-se com ela desde o poço.
Fui lá parar a sarar os acidentes do coração, e o silêncio, as sestas em chão de estevas, o zunir de fundo dos insectos, a maresia vinda com a nortada, o tempo lento, eram virtudes terapeuticas do lugar.
Agora entro lá como voyeur acidental, entrando num santuário que já não é o meu, em passos indecisos, como se estivesse prestes a ser surpreendido neste delito indecoroso de dar de caras com o passado. Mas ali só há paredes nuas e não aparece ninguém, nem sequer um gato com quem partilhar aquele tempo de monólogos.

Tuesday, July 01, 2008

Um gin tónico na areia

Depois do numero da manhã, uma compensação de peso. Uma escapada ao Algarve a socorrer um cliente, puxa hoje pelo apetite de um salto ao mar.
Há uma praia anónima, ali para os lados de Altura, de águas mansas e tépidas, aonde um gin tónico ao sol posto, e dois dedos de paleio com o meu amigo Jacinto, que me ensinou o truque e está lá sempre plantado, são o remate perfeito de um dia luminoso.
Hoje é o começo do meu verão solar.

Uma estreia

Hoje foi dia da RTP vir a Mértola emitir em directo. Fomos vários, dos mais variados quintais de actividade, a expressar de muitos modos o encanto de viver, trabalhar por aqui. Lá esteve a Nádia Torres, fantástica artista da joalharia, a Claudia Melo e o seu turismo de natureza, a Soledo e os melhores presuntos de Portugal, os gelados do Nicolau (que se chupam até ao pau) e muitas outras personagens de proveito. E eu.
Não preveni ninguém da ocorrencia deste meu numero, ainda há poucos anos teria panico de me ver em tais trabalhos. Agora, a idade tudo traz, até o descaramento inusitado de me estar nas tintas para o temor do ridículo. É um medo pobre, pobrezinho, e desse já há tempos que me salvei. Ganhei em expressão de vida, liberdade.