Friday, August 31, 2012

- A minha reforma é um bom quintal com arvores de fruto.

Assim falava Vicente naqueles anos idos e despreocupados, habitando na serra  à vista do mar oceano. Ao longe via a Arrábida e por entre a cópa dos sobreiros o azul do mar ali estendido. Era vegetariano prosélito e os frutos a sua perdiçaõ. Tal regime alimentar coloria-lhe as entranhas, isso eu percebi com espanto ao reparar no seu auto-comprazimento escatológico.
Aparecia sempre sorridente e  a tratar o mundo todo por "companheiro", sempre a viver no fio do arame com a sua camioneta de caixa aberta e taipais cambados, sol sorridente nuclear não obrigado, aos trancos e solavancos naqueles caminhos velhos, vendendo pão integralíssimo aos cámones na praia de Porto Côvo, melões do Alentejo que uns se vendiam, outros apodreciam devagar e inclusivé alguns se comiam. Para trás ficou a vida de fogueiro nas caldeiras de um navio mercante, até ao dia em que largou os vapores dessas fornalhas e se instalou no alentejo perto do mar, para recuperar todos os instantes que a vida de marinheiro lhe roubou à praia, ao sol, ao que se estava a esvair na ampulheta da vida.
Começou a ler uns livrinhos sobre alimentação natural e generalidades puras o fizeram mudar de vida.
Vicente seria nesses quarenta e muitos anos um homem incasável, por opção de solidão mas tambem porque era uma espécie de palhaço pobre pitoresco, mas apenas isso para o comum das donzelas casadouras.
Gostava de tudo fazer na rua, em especial dormir nesse imenso hotel mil estrelas das noites de verão alentejanas e não havia melga nem mosquito que se lhe intrometesse no sono.
Um dia este principe incasável recebeu uma visita do acaso: uma jovem milionária vinda lá da Flandres numa carrinha em busca de um amor compativel com o seu gosto pela comida natural, pela vida nua e despida ao sabor dos elementos da aragem maritima e do sol terno do litoral. a ultima vez que os vi passeavam-se por um laranjal abandonado no meio da serra, mordiscando laranjas e nêsperas ao gosto da vala dos rouxinois.

Thursday, August 23, 2012

Chegou já vinha bambo mas de sorriso glorificado, jogou as rolas para cima do balcão.
Voltava do azinhal aonde foi caçar em companhia do Aguardente, esse levou a manhã esparramado debaixo de um chaparro cuidando que mesmo assim as rolas lhe apareciam em mira, afinal o calor ataca mais uns do que outros. Vinha contente, o brilharete estava garantido, rija palmada no balcão, vá, cervejas pró pessoal todo molhar a goela.
Para a jornada ser perfeita, rematou:
- Toda a vida fui extravagante e nunca me faltou o dinhêro!
E com isto despejou uma média gargalo da goela abaixo...

Tuesday, August 21, 2012


Doutor Souza comprador de dois penicos que foi em Alcaria
de noite os usou
pela manhã já os não queria.

 
Era tal doutor figura grada por estas bandas do campo branco. Vindo de terras beiroas, pródigas em doutores e deles cerimoniosas, aqui casou com uma dona Eglantina de teres e haveres basta, e constituiram um rico casal de terratenentes.
Certo dia, o doutor ansiando por criar boa impressão domés...


 

Sunday, August 19, 2012

Se Cristo não fosse galileu, seria louro, teutónico.
Isto pensava eu a ver Petar, feições semitas, cabelo liso e escorrido contemplando deliciado o rabanete da sua horta.
Era mais um no colectivo que habitava a floresta de sobreiros com vista altiva para o mar. Eles hirsutos, gadelhudos e barbudos. Elas, umas rolas, outras roliças. Enfim, alemoas, boas.
De volta do monte, carcaças de carros esventrados, carrinhas com sois sorridentes, Atomkraft nein dank, todos livres e libertários, vivendo de papo para o ar rabo ao léu, talvez do ar e do perfume das flores.
Quem não percebia nada disto eram os vizinhos serranos, amigos de se assomarem às moitas circundantes a dar fé do que ali se tramava, no fito de verem as alemoas,boas, e seus alvos traseiros, de uma brancura nívea a que não estavam habituados, eles que apenas se tinham apresentado às achocolatadas brasileiras da boite erma do lado de lá da serra.
Com o fim do dia, estes habitantes saiam da sua letargia diurna, a noite chegava apoteótica, logo rebuliço se instalava por entre uma névoa resinosa de maconha, soando congas e batuques, Nina Hagen no mais melodioso punk possivel, vozearia deles e delas naquela lingua de trapos, cerveja e vinho até se soltarem as gargalhadas, garrafas partidas e fumaça com fartura. Com o andar das horas, madrugada adiante, as gargalhadas dispersavam, espalhavam-se, depois vinham murmurios ciciados, risadinhas languidas, lascivas, até que o galhofar baixava até serem suspiros, gemidos ais. Então tudo serenava e a coruja finalmente pousava no tronco largo do sobreiro, e soava a sua cantiga de flauta do mato.
Pétar não queria saber de alemoas, boas, para nada. a sua dimensão não era carnal, era vegetal. Levava as tardes da sua eternidade a acompanhar os progressos do seu hortejo de microagricultura natural. Num talhão improvisado na beira de um córrego, entre urzes e chaparros, ele possuia um rabanete, três alfaces e duas nabiças que vigiava com exemplar desvelo, a acompanhar-lhes o crescimento hora a hora, a vigiar o aparecimento de alguma lagarta, a sentir energia fotossintética. Os gestos eram lentos e pausados como se todos eles fizessem falta para encher a tarde.
Um dia esta felicidade vegetativa chegou ao seu fim. Os seus camaradas, zelosos curadores dos bons e revolucionarios costumes, resolveram bani-lo, ele não fazia companhia a ninguem e adquirira pulsões capitalistas expressas no seu apego materialista a umas quantas hortaliças encontradas lá no fundo de um barranco.
E assim Pétar virou costas ao seu jardim do paraíso terreal, arrastando a sua figura de cristo incompreendido pelo pó dos caminhos deste mundo.

Wednesday, August 08, 2012

Velho, da cinta para baixo

Talvez seja uma septuagenária tão fogosa como zelosa da harmonia do lar. Não o sabemos.
Já em nova era um prodigio de feiura e mesmo assim casou com um traste que percebendo não haver ali dinheiro aonde por as unhas, se pôs a mexer para lugar incerto, deixando-lhe um filho e o proprio pai para cuidar. Depois aviou mais uns quantos, dos quais não reza a história para alem do funeral. Já estaria pelos sessenta quando um deles se queixou do seu excessivo dinamismo nas praticas intimas. Concordei, o sexo cansa muito...
Este agora é rude e boçal, fala aos berros como se tivesse um trombone na goela, pobre diabo não aprendeu a falar de outro modo, terá concerteza algum mérito, talvez paciência, tão só estar ali ao lado a respirar. Fazem um casal pataroco, velhos e rélhos, meio vesguetas, surdos e qualquer deles com poucos recursos de entendimento, ainda arranjam  vida para terem umas ciumeiras light e habitarem uma casa de mutuas desconfianças patrimoniais.
Mas o pior, o verdadeiro desastre daquela harmonia, são as mulheres a dias, que não para lá nenhuma. Ela não consente lá nenhuma, ali assim de joelhos, com os quadris sacudidos a esfregar chão, aqueles traseiros são sempre obra do demónio, potenciadores de explosiva licensiosidade. Ela diz que ele é muito maluco com as mulheres, ele protesta no abrigo dos seus oitenta e seis anos, que não, é velho da cinta para baixo mas ela não vai em cantigas e a todas despede ao fim de nada, para admitir outra e outra, ou melhor, um casal é que era....
Afinal ainda há vidas apimentadas.

Tuesday, August 07, 2012

Boa noite

Nada bule, aliás, bulem as melgas de volta do tímpano.
Estou em sociedade, acomodado no poial da taberna, desarvorados do abafadiço das casas, e as palavras são cerejas que partem das melgas para os morcegos em seus voos venatórios.
Diz que era criança e apanhava morcegos com o tio, eram encafuados na gaiola dos grilos, lembras que apanhavamos-lhes serralha e que o pai vendia na loja gaiolas de plastico às cores, vermelhas, verdes e azuis, moradias de grilos cantores sem parar? Tu dizias, apanhei um grilo bom, muito amarelinho, de cricris promissor. E a zorra canta no bico do cerro, um badalo estremece no ovil, afinamos o ouvido para estes mistérios, o olhar no branco e negro das casas, das sombras, deste silêncio que corta as palavras. As vozes perdem nitidez, o sono vem aí a chegar. Boa noite....

Monday, August 06, 2012

As ervilhas do senhor Adelino

O senhor Adelino era um borrachão.
Nunca se distinguiu nem pela quantidade, nem qualidade do seu trabalho. Quanto muito a sua jornada chegava à hora em que a Dona Maria, mulher doente, mulher para sempre, colocava as sopas sobre a mesa, as migas de pão com azeitonas, o cozido de couves sem conduto. A seguir era sagrado descansar. Ressonada a sesta, aconchegava a rala pelagem sob o chapeu de feltro e lá ia a cavalo na pedaleira até à Parreirinha, ao chegar ao termo da cidade, aonde se acomodava de volta dos tintos, ao balcão com homens pardos, tisnados do sol e da fornalha dos telheiros, cada um puxando de sua léria ou parvejando àcerca de vidas estranhas. E já escuro, voltava ao abrigo das sopas da sua para sempre.
Do outro lado do aramado estava o vizinho da Bufarda. Esse só se divertia com o que lhe dava resultado, trabalhador infinito, provido de enormes mãos de semeador. Era um geómetra das hortas, desenhava-as com a folha comprida da sua enxada, feita a propósito pelo Comendinha, homem de todos os recursos do desenrasque, desenhava canteiros de nabiça, espinafre ou tomate, sem recurso a cordel, a ferramenta apenas tocada pelo olhar e tudo saia direito como por magia. Vivia a vida de quintaneiro com regra de esquadro.
Uns vizinhos de tão díspares esquadrias morais só poderiam se aborrecer. Tudo começou por mor de umas ervilhas do senhor Adelino, semeadas antes da hora das migas. O vizinho da Bufarda, diligente aproveitador do que deus dá, tinha uns pombos no seu pombal. Ervilhas e pombos, uma atracção fatal, tão funesta a combinação, que os pombos apareceram mortos, envenenados com qualquer peçonha que nem aos cães aproveitaram. Foi um ai até se ouvir bradar um "OIÇA LÁ!" vinda da Bufarda, santo e senha para se iniciar uma conversa desagradavel lá pelo sossego do alentejo.
Já morreram ambos, mas lá aonde estiverem ainda estão de candeias às avessas, a endereçarem-se para as mais diversas partes, mal para todo o sempre.

Sunday, August 05, 2012

-Meu pai toda a vida possuiu colmeias.
Brilha-lhe um olhinho miudinho por trás das lentes, bigode bem regado da espuma da média garrafa, sorriso amarotado ali a bailar. E continua neste jeito, ele não percebia nada daquilo, tinha a malhada lá na soalheira da serra, bem altas, ávidas de sol e aroma de rosmanos. Levava lá as tardes da primavera amodorrado na sombra reles de uma moita esperando a saida de algum enxame e, embalado pela zunida, assim se deixava dormir uma rica de uma folga. Passado o tempo da enxameação, logo os suões lambiam a primavera alucinante da serra de Mértola, os amarelos tingiam as taliscas sedentas e chegava o verão precoce por finais de Abril, logo depois pelo são joão era tempo de crestar.
Aí o pai guerreava com o filho por mor de o levar de ajuda ao carrego do mel, matavam as abelhas a poder de méchas de enxofre como abelheros primitivos que eram, mas nem assim o moço se acomodava ao trabalho, com medo de alguma picadela transviada e o mais das vezes abalava a toque de zunida, desalvorado, direito sabe-se lá aonde, ficando o pai em arrelias, enervado com tamanha desafoiteza do rapaz. Lá acabava o velho por seguir noite escura a caminho da arramada com os cestos de mel pingantes pelo caminho.
Hoje já não há pai nem abelhas que apoquentem. Abelhas ainda as viu na Guiné aonde fuzilou pelas machambas, mas sempre passou de largo à vista de tais bichos. Já lá vai o tempo em que correu o alentejo, ajudante de motorista a alombar com grades de cervejas e sumos, por vendas e lupanares, entre os barros e colinas serranas a apagar a sede desses povos. Passou ainda ao lado a esquiva professora, boa de perna e pálida figura. Um dia deu por ele sem trabalho, bigode farto mas já grisalho. Agora acompanha ovelhas, com vagar. Do pai volta sempre a história das abelhas e aquela luz a apontar aos olhos.