Tuesday, November 27, 2012

Estou aqui sentado a ver a esteva crescer.
Acordo e nem sei por onde pegar no dia, acabádo de chegar da França, desta vez com uma mão à frente e outra atrás, voltei com o mesmo dinheiro que tinha quando fui um ano mais prá pera.
Começei aos quinze anos. Fui mais uns camaradas apanhar pêra a ganhar à caixa. Não havia por aqui melhor do que eu que sou um touro de briga, trabalhava enquanto houvesse ...
luz do dia, depressa enchia os bolsos de dinheiro. Aos quinze anos ainda o buço estava enralado e já eu ganhava e estafava fortunas em mulheres:
brancas, pretas ou azuis, aos dezoito anos já tinha dado a volta ao mundo em madames e demoiselles. Agora estou outro, bem entendido, tenho uma miuda e não sou desses. Do que eu gostava era de caça e de andar atrás de ovelhas, mas falta-me ter fazenda para isso.
Agora estou nos vintes e voltei à França, mas não correu como de costume, o patrão dizia que a fruta não se vende como vendia, não tinhamos ordem de colher, passámos os dias à mingua de ganho, a trabalhar uns dias por outros, até me fartar de estar ali à disposição do freguês.
Voltei e encontrei aqui tudo na mesma, a minha vida na aldeia é estar aqui sentado à espera. Mas que ei-de fazer? É aqui que eu gosto de viver, não gosto de mais lado nenhum.
Aqui sentado a ver a esteva crescer e a ter pouca vontade de me levantar.
Comendo bolota com pão ao balcão.
- Já não há homens! - diz ela, entrando porta adentro daquela catedral de boinas e bigodes, vai aviar-se do seu cálice de moscatel docinho, ciente de que chega bem para todos.
- Bêbada! - disparou ele entre bigodes.
- Se não tinhas arranjado uma mulher que te aquecesse os pés...
- Quero lá eu mulher, mais a mais se saisse assim como tu - dizia ele acariciando a ga...
rrafa da cerveja.
- Até uma bêbada tu querias se a pudesses apanhar...
- Se arranjasse mulher que bebesse não queria eu saber dela!

Velhos e malucos estamos, e sempre tive vontade de puxar as orelhas ao Silvinha, que eu vi nascer, já eu era raparigota, e vi passar a vida por ele, assim torto como é, mas joia de moço. Torço-lhe as orelhas e dou-lhe tápas no cachaço, mas gosto muito dele, não desfazendo.
Foi o que durou um moscatel, digo agora eu, ainda mal refeito da degustação de bolota com pão, ao balcão.

E depois, está claro...

Quando era moço novo, corria aí os bailes todos na minha motorisada. Para se ter motorisada já era preciso ser-se alguem, não era para qualquer um, e lá ia eu todo contente, acudindo aos bailes, apreciando as moças. Chegámos a ser três a cavalo na motorisada, a caminho duma bailação.
Uma vez no Algodor, levei catorze négas, mas era com aquela que eu queria dançar, se não fosse com ela não era com ...
mais nenhuma. As mães traziam as cadeiras de casa e lá ficavam plantadas, a olhar pela virtude das filhas, eu bebia cervejas mornas, não havia frigorificos. Fui ter com ela mas desprezou-me, que já tinha par e isto, e aquilo. E eu, mas então porquê, se ele lá não estava, não tinha mal nenhum. Tanto fiz e tanto disse, que ao décimo quinto pedido, ela lá disse que sim, mas só uma vez, para eu lhe deixar da mão. Foi até às seis da matina, e depois, está claro....
Está claro, não o que vocemessê pensa, está claro, que foi cada um para sua morada, em boa ordem, pois então.

O bastardo

Homens seriam valentes, em fazendas e mulheres que possuíssem, legítimas ou outras, que de tudo se fazia usucapião.
Aquele lavrador, famoso por umas botas que perdeu em arramada alheia, em apressadas despedidas de uma amiga, dela teve varão, afastado dos sagrados sacramentos, nascido e criado de pai incógnito, ainda que do povo fosse bem conhecido. Da bastardia não se livrou o fruto desses escondidos amores, e a vida levou fora da fala do pai natural, bem como das suas heranças, herdadas pelos legitimos irmãos. Foi uma vida num lugar ermo, entre serras, trabalhos esforçados, vida de recoleção, caça, e outros nadas.
Era um pobre diabo que andava léguas a pé, esfarrapado, cheirando a fumo, de mau viver em casa sem janelas, nem chão, nem companheira aconchegadeira, descendência ou familia chegada, um sem eira nem beira que ali estava.
No dia em que mudou a moeda, saltou da sua vida anónima e pequenina, ao chegar ao banco, com uma saca do trigo carregada de escudos, para trocar pelos novos euros.
Jogou-se à estrada de boleia, a caminho da vila com uma saca às costas, que ninguem imaginava podesse conter uma pequena fortuna em notas enroladas, amarfanhadas, que levaram o gerente do banco a encerrar extraordinariamente a agência, para em sossego, se contarem uns largos milhares de contos em notas coçádas, mal amanhadas e pior acondicionadas.
Voltou para casa com a saca cheia de notas de euros, para a sua vida contada, e agora, um pouco menos anónima. Mas só lhe ficou a lenda da saca de notas, parece ter desaparecido, ascendido aos céus por entre as estevas, um pobre diabo assim, torna-se um homem invisivel, ou um morto que a ninguem , nem ao proprio diabo lembra.

Monday, November 19, 2012

Recuadamente no tempo, reinavam as bruxas.
Se há benzeduras para o bem, tambem as haverá para o mal, digo eu, mas tambem não percebo nada disso.
Nesse tempo, havia-las. Era eu rapaz e andava assombrado, nem sei bem com o quê. Talvez alguem me desejasse mal e me encomendasse ruins intenções.
Fiz-me ao caminho por esses cerros, a Ti Chica morava junto à ribeira, lá por trás da serra, numa casa velh...
a de taipa, o homem apanhava peixe na ribeira, esgatanháva na horta e fazia seara para dar de comer ao macho. Ti Chica benzia quem lá fosse. Lá fui e ela me benzeu, porque assim e assado, desta e daquela maneira, fez as rezas, bocejando. Fiquei melhor, embora, pelo sim pelo não, me tenha ido benzer à vila, ao padre Pinho. Com os dois haveria de ser mais completo...
Conta-se que, belo dia , foi um cigano até áqueles ermos a benzer o mocinho enfermiço. Ela descansou-o, dizendo que saía dali bom, e a casa chegou morto. Diz o povo que o cigano voltou e lhe deu grande carga de porradas e se ouvia gritar várias léguas em volta. O certo é que se acabaram as virtudes.
Foi há trinta anos aquela noite mágica e primordial em que se acenderam os candeeiros da iluminação publica. As galinhas cantaram toda aquela noite inusitada, e acabou o reinado das bruxas, recolhidas no breu da noite

Sunday, November 18, 2012

Angelo Salvador era o ultimo moleiro da serra de Grândola.
Lá bem no alto, com o mar à vista e a Arrábida ao longe, as velas do seu moinho zuniam ao vento oceânico. A idade concedera-lhe vagares e um carro velho. Do pai ficou um moinho, colmeias de lusalite, e uns olhos azuis liquidos e ladinos que muitas moças ajudaram a desgraçar. Com estas ferramentas de vida se ia governando, varria a farinha para dentro de sacos e mais uns ovos da capoeira, uns queijos que negociava e uns frascos de mel mal coado, ia ao mercado fazer pela vida. Com pouco mais do que uma piscadela de olho arranjou uma lavradora e que boa ela era, tinha cortiça.
Assim o achei estabelecido na floresta de sobreiros da Boavista, pouco interessado em alemoas, mais entretido a varrer farinha do chão e a soprar o pó dos queijos frescos tombados pelo cão durante a noite. Da sua velha, dizia ser quente, utilitária nas noites de Janeiro em que as corujas cantavam nas eiras e parecia gear como para lá da serra. Dava-se mal com os vizinhos Archada, uns bichos, par de irmãos gémeos, minorcas, magros, e negros de vida sem agua, entre cabras e galinhas, moradores em monte sem chaminé, sem janelas e abundante de fumarada .Salvador tinha-me em conta de deus das abelhas, de entendido que ali tinha caido do céu, pois desse assunto só entendia o vender mel em frascos da tofina nas feiras, de preferência aparecessem já cheios, sem a lagariça que ele promovia, centrifugando as poucas alças na casa de telha vã, por entre um enxame de abelhas voando e caindo, nos baldes do mel donde ia depois catá-las, afogadas . Era uma apicultura de precária rapina para a qual me convidava a dar assessoria, enquanto ele, à vista da primeira abelha, logo se refugiava no moinho donde aparecia o nariz à porta, insistente a perguntar, fosse verão ou inverno:
- Têm méli?
Passaram os anos sem lá ir, nesse tempo sonhei várias vezes que já nem moleiro, nem lavradora, nem moinho, gémeos bestiais, ou sobreiros, nem sequer alemoas boas. Pesadelos.
Quando fui, encontrei apenas uma vivenda com vista para o mar e um muro bem alto.

Saturday, November 17, 2012

Se é para ser bom, eu sou bom, e se for para ser mau, eu serei mau.
Nunca levei para casa nada por dizer, a vida foi-me madrasta, desde gaiato, descalço a trabalhar num telheiro. Com o primeiro soldo comprei as minhas primeiras botas e agasalhei os pés à primeira vez na vida.
Arranquei árvores, a ganhar à peça, mais o meu irmão, levávamos um dia inteiro de picaretas e pás, para arrancar um eucalipto dos grandes, passámos meses longe de casa em terras distantes a arrancar arvoredo, estivémos na Arrábida a fazer carvão, em alcoentre a arrancar eucaliptos, corremos o alentejo a limpar charneca para outros semearem o trigo. Nunca ninguém me pisou, que eu não deixei.
O Júlio era velhaco, queria o mundo só para ele, e comigo nunca se deu bem, que eu depressa o sacudi da minha volta. Um dia o rapaz dele brincava com o meu, gaiatos, já se sabe, brincando com uma flóber, pregou um tiro na perna do meu. Cuidas que o Julio, pai como eu, me veio perguntar q...
uanto foi a despesa no hospital? Nada, até hoje.Pareceu-me mal, nunca mais nos falámos, nem truz nem buz. Ele passáva ali na motorisada a caminho do trabalho, à curva, junto ao meu portão, e não é que buzinava? Filho dum cão, eu andava roídinho de raiva dele, a passar ali, a fazer pouco de mim, buzinava o cabrão. Um dia, ventoso, andava eu enraivado com o tempo de um real filha da puta, limpando oliveiras com o machado, lá vem ele com a buzina, ao meu portão. Foi uma névoa diante da vista, joguei-lhe o machado, que lhe passou a razar o capacete, desiquilibrou-se da motorisada mas lá conseguiu jogar os pés ao chão, firmar-se na lambreta, e ala.
Nunca mais lá passou, teve que passar a tomar o caminho da Garraia, mais longe da cidade e do gume do meu machado, nunca mais se atreveu a passar ali, a fazer pouco com a buzina. A mim cabrão nenhum me pisa, sei ser mau como sei ser bom.