Friday, February 15, 2013

A mulher dorme no quarto, a mula dorme em pé na cabana, toda a noite bate com os cascos no chão e não me deixa descansar. Passo as noites a esgravolhar na vida. O tempo está-se a acabar, talvez por isso durmo menos e sobra muita vida ao que passou.
Lembro as madrugadas em que ia a caminho da cidade, carroça carregada de hortaliças para o mercado, a passo manso de mula, alumiados por uma lanterna. Os rapazes ainda estavam em casa, quando casaram acabou esta volta, não poderia abalar noite escura deixando a mulher sózinha, nunca se sabe se não apareceriam por aí alguns gaiatões, que valendo-se de não haver homem em casa, ainda pensassem em fazer pouco dela.
Lembro a minha filha, menina do pai, de todos foi a que saiu a mim. Muitos trabalhos tive para a casar bem. Para lá de ser bem encarada, pois eu tambem nunca fui feio, tinha uns pernegões que reviravam os olhos da rapaziada. Um dia, ia mais ela à Rua da Lagoa, e passou por nós um magála que chamou:
- Bonéca!
Encarei-o e disse:
- Diga lá outra vez! Não ouvi bem! Vá, diga lá!
O outro baixou os olhos e seguiu à vida dele. Era preciso andar sempre de olhos bem abertos.
O irmão da minha genra, grande tunante que era, sabia a que horas ela se apeava da carreira, vinda da cidade quando ainda andava a estudar, e para lá ia esperá-la e fazer olhos de carneiro mal morto, que era só o que ele sabia fazer na vida. Mal dei notícia, fui lá ter com ele à paragem:
- Some-te daqui! Já me chega bem a tua irmã na familia.
Depois começou a namorar com um furriel que conheceu num baile de carnaval da Casa do Povo. Rapaz de jeito manso, talvez frouxo a mais para o feitio dela, namoraram-se aqui à porta durante três anos, sempre com respeito, com a minha mulher a tomar conta e no final, foi um casamento bonito.
Casar os filhos foi um sossego, sou agora mais brando, mesmo que a pele já esteja encortiçada, a idade amacia-nos. Os grilos cantam lá fora e tudo o resto está calado, já tomei o comprimido, a ver se descanso, a vida custa a sair da cabeça.

Monday, February 11, 2013

Vicente parecia amar os moinhos acima de todas as coisas.

Morava na Cabeça da Cabra, num monte pertença de um moleiro retirado e já desterrado num apartamento em Sines. Ventura de sua graça, da porta de sua casa em Sines, avistava o cerro com vista para o mar aonde estava o seu moinho construído em vida do pai. Tinha por aquele moinho um desvelo ilimitado, fechado a cadeado.

Vicente chegou à sua porta a saltitar na sua camioneta enpoeirada e ostentando o sorriso solar e sorridente que desarmadilhava qualquer não. Buscava um monte para morar, com vista para o mar, forno de lenha para cozer um pão, elixir da eterna saude,e moinho para moer o trigo mais biológico possivel. Ventura, depois de lhe analisar o desalinho e o desatino, lá disse que sim, na condição de nunca a porta do seu moinho ser aberta.

Vicente não peneirava a farinha, era o pão dos homens antigos que ele anunciava pelas praias dos cámónes, o pão mais abrasivo para as entranhas desprevenidas de toda a costa alentejana. A sua casa da Cabeça da Cabra tinha impregnado o cheiro acre da infinita fermentação das farinhas, caldeado com notas odoríferas de frutos, melões, cerejas e maçãs em dilatado repouso. Ia vivendo do pão e pagando as rendas com maior ou menor atraso ao senhorio Ventura, amiúde tratado por companheiro e contemplado com inumeras ofertas de consistentes pães.

Tudo decorreu na melhor das harmonias até ao dia em que Ventura amanheceu abrindo a janela à maresia e engoliu azia pelos olhos, vendo as velas do seu moinho, a todo o pano desfraldadas à brisa oceânica. Não houve "companheiro" para cá nem para lá, nem pães que valessem à continuação do contrato oral de inquilinato. Por muito amor que Vicente dedicasse à utopia da moagem, o amor de Ventura à mesma causa, tinha a consistência da posse que era bem real, como lhe demonstrou, fazendo um chinfrim de insultos e ameaças de fazer e acontecer. A panificação e a vida seguiram o seu curso, noutros ares, sob outra melhor estrela. A casa seguinte já não tinha moinho.