Wednesday, July 24, 2013


Vicente e Virginia desfrutavam da sua gloriosa nudez, enquanto colhiam laranjas em sua propriedade, indiferentes ao trolha que lhes fazia os acabamentos no telhado da casa, e muito se distraia com aquela ausência de vergonha, em prejuízo obvio do andamento dos trabalhos, digamos que seriam não lavradores, mas tão só, recolectores dos prazeres da vida terreal, da carnal não sabemos, apenas supomos, como o trolha.
Ela chegou no seu carro diretamente dos frescos da Flandres, em busca do sol e de pessoas afins. Vinha impregnada de certezas sobre a naturalidade saudável do crudivorismo vegan, sedenta de sol e mar que lhe tingissem um pouco as maçãs do rosto e trazia vastos confortos na conta bancária de rica herdeira.
Ele sobrevivia de fazer pão e de negócios de ocasião, melões de Odivelas, cerejas do fundão, iguarias que vendia pelas praias, enquanto discorria sobre os benefícios da alimentação natural, do fabrico caseiro da pasta de dentes com argila, das delicias de dormir na rua nas noites de julho, ter um pomar que lhe acudisse á velhice de frugívoro, a ténue esperança no aparecimento de alguma improvável companheira.
 Encontraram-se à esquina de um enorme sobreiro  a cuja sombra Vicente era devotado, ela tinha vindo procurar uma ervanária naquele vasto deserto arborizado e lá se demorou em conversas que depressa as evidências do coração conduziram à sua alma gémea. O amor estava ali deitado em slipes castanhos, na esquina do sobreiro, esperando por ela.

 

 

                               Se bruto é quem assim come, mais ainda o é, quem lho dá.

Assim pensa Filomena, vendo o senhor padre Antunes acabando de se bater com um peru assado, rematando um opíparo almoço de seis pratos variados e outras tantas sobremesas. Caso não saibam, esta senhoria com a alcunha chocarreira de padre boi, era conhecido pelas suas abundancias de corpanzil, ser homem de muito alimento em comida, bebida e paroquianas incautas, tanto que eram inúmeros os filhos de pai incógnito naquela paróquia, ganhando muitos deles ares a sua reverência.
Sua majestade El rei, veio a Coimbra passear-se mais a família e a corte, e de todos os notáveis regionais ao almoço, não poderia faltar sua reverência, o senhor padre Antunes, de quem se aguardavam façanhas capazes de ombrear com sua alteza, nas reconhecidas capacidades de ingestão que a ambos eram reconhecidas. O nosso prior portou-se com galhardia mas distinção, de tudo comeu, dos seis pratos mais as sobremesas, num repasto que o sentou à mesa umas boas cinco horas. No final, já todos estavam consolados e bem regados de bom vinho de Colares, melhor ou pior esparramados em fauteilles de veludo, fumiscando cigarrilhas enquanto o nosso santo prior arrastou o corpanzil trôpego de comida e sífilis, até à copa, indagando prazenteiro do que lá haviam posto a recato. Filomena, criada de servir no cabido da Sé, já lhe conhecia as manhas e delas se mantinha afastada, seja por manter prudente distancia, ou por ser franzina e escassa de carnes, pouco ao gosto dos apetites paroquiais, a verdade é que sempre foi escapando à voracidade do senhor prior.
O padre boi instalou-se no banco corrido, à mesa da copa, e naquele recato chamou a si o peru assado, recheado com castanhas e azeitonas. Com ele se entreteve mais um longuíssimo bom bocado e longe da vista dos restantes convivas. No final, parecia finalmente consolado:
- O passarito até que não estava mau!

As abelhas são uma névoa que passa na vida da gente.
Tudo principiou na curiosidade infantil por estranhos objectos enleados em teias de tempo e aranha. Ele eram colmeias desbotadas, um centrifugador perro e chiante, quadros meio despregados, uma garrafa de hidromel já com formigas dentro e esquecida num armário velho. Heranças do meu avô, um neo- rural, antes do tempo em que isso passou a estar tipificado por académicos, desses que buscam a classificação de tudo. Gustavo era um homem da cidade surpreendido e tocado pelo grande espaço quase africano do sul, veio fazer agricultura munido de livros e tratados positivistas, autenticas odes triunfais da lavoura. Lá vinham os manuais de apicultura, moderna à época, que fizeram dele um pioneiro do mobilismo e com essa sede de modernidade vieram das primeiras colmeias moveis que se viram no Alentejo. O entusiasmo não resistiu a uma manhã de cresta que descambou num pandemónio de picadelas, com as abelhas em fúria a matarem perus e galinhas e a ferrarem até em árvores. Enfadou-se com tanta fúria e encostou as abelhas no esquecimento. Trinta anos depois, um neto iria conhecer a cigueira das abelhas, provar do seu veneno e procurar a alma das flores, o sentido alquímico que existe em cada frasco de mel.

Friday, July 12, 2013

Restolho de Meciares


Já o trigo se debulhou em Meciares, lugar ermo, certamente provido da mercê de bons ares. Os restolhos entregues ao gado, o badalar do rebanho corta a cantoria das cotovias, pássaros pardos, vizinhos das palhas.
- Não mora cá ninguém, já fomos muitos, alguns trinta. Eu resisti por cá, apanhava umas túberas, pescava, tinha artes de armar laços, sempre me ia governando com o que aí havia, tanto, que um dia quando mudou a moeda, enchi uma saca grande, dessas do adubo, cheínha de notas que lá havia para trocar. Cheguei ao alcatrão e fiz alto ao primeiro carro que passou para a vila, levando a saca aos pés. Na Caixa, o gerente fechou a porta para ficarem à vontade contando o dinheiro. Quando de lá saí, levava menos quantidade de notas, estes euros não têm jeito nenhum. Vou para velho, estou um merdas, mas mesmo sendo um penante que nem motorizada tem, consegui arrebanhar umas massas.
Não sei donde chega este falar, talvez de dentro da taipa das paredes, estamos na hora da calma, nada bule por aqui, é apenas um lugar de memórias a caminho da ruína. E o que ficou é restolho.

Tuesday, July 02, 2013

Longos dias de Setembro



Longos dias tinha Setembro. Ainda hoje tenho ânsias de ver aparecer os meus, num carro a crescer para cá do horizonte. O meu pai chegava ao final da semana e era festa. Com ele vinha a luz, era ele quem sabia acender o pétrómax, a libertar-nos da penumbra dos candeeiros de petróleo. Em Setembro, a minha avó Isabel, de olhos de azeitona verde e espirito dócil, assentava arraiais na quinta, em mês vindimo de uvas, figos e rendas do senhor Adelino. Entretinha-se a regar de regador, todos os finais de tarde, uma alameda de lírios roxos que nunca se viam floridos por falta de comparência à Primavera. Eu percorria a quinta pedalando e sonhando com pássaros desconhecidos, pelos intervalos das sestas obrigatórias, à tardinha ia com a Noémia, criada de servir desde sempre e que me viu nascer e crescer, buscar o leite à cocheira do senhor Adelino, aonde três vacas tourinas eram ordenhadas para um balde de folha. Ficava pasmado a ver as bolinhas amarelas à superfície do leite. O meu pai chegava de Lisboa quase à noite, trazia a luz mas apreciava a penumbra, criado entre granitos nas serras beirãs, do que gostava no verão alentejano era das noites tropicais. Sentávamo-nos quietos a deixar falar os bichos noturnos, grilos, mochos e afins ou esticávamo-nos na laje do casito, ainda morna da canícula, cada qual apenas falando com os astros, o luar e suas sombras, o meu pai a remoer um verso, por vezes se dizia qualquer coisa bem medida. Bastava-me aquela presença serena que chegava sem imposições nem normas. Trazia a luz e encurtava os dias, fazia deles setembros.
 

Custosa de dar mão


- Se já em nova era ela custosa de dar mão, agora, claro, leva o tempo a sacudir-me.
À sombra da oliveira, naquela tarde de Junho, Inácio mexia na barbinha aparada enquanto bebericava uma cerveja e arranjava explicações para a vida. Não tinha muito de que se queixar, um emprego no estado bem pago, um carro razoável, a filha já constituída doutora, sobrava-lhe o tempo para tocar clarinete na filarmónica e ainda para possuir umas abelhas lá para os lados de São Sebastião. Mas, Ó vida! Não chegava.
- Isto das abelhas é só uma entretenga, uma boa razão para não parar em casa. Apanho ali cem ou duzentos quilos de mel, vou vender aquilo em frasquinhos, um aqui, outro ali, dinheiro de sardinhas! Quando dou noticia aquilo não é nada.
Inácio levou a mine à boca e de um trago ganhou fôlego para o devir.
- Sabes a bem dizer o que lhe faço?- Os olhinhos verdes, miudinhos, fizeram-se-lhe bailarinos.
- Atiro as moedas para uma lata, faço ali um migalheiro e quando lá tiver algum que se veja, sacudo de lá o dinheiro e vou passear a um sitio escuro, longe daqui, lugar aonde me não conhecem. Tem lá mulheres de todas as cores, feitios e medidas.
- Aquilo lá em casa já prescreveu, agora, nem que fizesse um requerimento em papel selado. Ela foi sempre custosa de dar mão.

Cigana


Amo-te cigana.
Não tens nome, cigana, e eu sou apenas um “senhor” atravessado por uma troca de olhos, uns figos lampos cheios de intenção e gula. Não sei em que dia, sonho ou primavera.Talvez numa manhã de Abril  na máxima floração das estevas, uma caravana de ciganos e suas carroças e bestas pediam boleia no fundo de um barranco fundo, os animais cansados não queriam subir. Em minutos, colchões, panelas, roupas e crianças tudo se mudou para o meu camião e em menos tempo ainda subimos a ladeira. Tu acompanhas-me na cabine enquanto conduzo, falaste-me como para um igual mas com altivez de tourada, gosto do teu odor a lenhas e mato, do manear das mãos, dedos longos acobreados, cor de xisto, e a cintura, Deus, foi tirada a uma estátua.Tantos dias lá passei depois na esperança de te ver aparecer numa vereda, ser chamado a contigo desaparecer no mato.

Os amigos


Uma coisa eu sei, até dois cães que se cruzem numa azinhaga dizem alguma coisa um ao outro, encostam os focinhos, abanam o rabo, trocam salamaleques no falar deles. Gente que se encontre aí por uma vereda, ou mesmo em rua de aldeia, sem nada dizerem, não são gente, nem sequer condição têm de bichos que, como sabemos já, se cumprimentam.

Mas falar a quem se nos apresenta no caminho é uma coisa, amizade vem a ser outra. O meu compadre António é um chico fininho de falinhas mansas. Recebi-o sempre bem, nunca faltou nada na minha mesa quando ele chegava com a boca carregada de parvoeiras, conversas de garganeiro, veja-se que havia sempre fartura de cervejas, de pão, de carne, comida a rodos e portas escancaradas, mas ainda assim, pedinchava sempre por mais, jogava olhos de cobiça e mãos também, a tudo quanto alcançava. Tanto fez que tive que o botar da porta para fora, nalgas pelo chão à poeira da rua. Acabaram-se de vez as conversetas.

Já com o Comendinha, que Deus tem, desde a primeira hora me entendi, estávamos sempre de acordo fosse na caça, fosse a apanhar azeitonas, a acender o forno para os bolos da festa, a jogar à carta, ou a cantar umas saias. Eramos camaradas para a paródia ou para o trabalho, nunca um ficou devendo nada ao outro. E assim é que é bonito! E já agora, tu não sabes, que és novo, mas eu vou dizer, o teu maior amigo é o teu pai, a seguir sou eu.