Monday, August 06, 2012

As ervilhas do senhor Adelino

O senhor Adelino era um borrachão.
Nunca se distinguiu nem pela quantidade, nem qualidade do seu trabalho. Quanto muito a sua jornada chegava à hora em que a Dona Maria, mulher doente, mulher para sempre, colocava as sopas sobre a mesa, as migas de pão com azeitonas, o cozido de couves sem conduto. A seguir era sagrado descansar. Ressonada a sesta, aconchegava a rala pelagem sob o chapeu de feltro e lá ia a cavalo na pedaleira até à Parreirinha, ao chegar ao termo da cidade, aonde se acomodava de volta dos tintos, ao balcão com homens pardos, tisnados do sol e da fornalha dos telheiros, cada um puxando de sua léria ou parvejando àcerca de vidas estranhas. E já escuro, voltava ao abrigo das sopas da sua para sempre.
Do outro lado do aramado estava o vizinho da Bufarda. Esse só se divertia com o que lhe dava resultado, trabalhador infinito, provido de enormes mãos de semeador. Era um geómetra das hortas, desenhava-as com a folha comprida da sua enxada, feita a propósito pelo Comendinha, homem de todos os recursos do desenrasque, desenhava canteiros de nabiça, espinafre ou tomate, sem recurso a cordel, a ferramenta apenas tocada pelo olhar e tudo saia direito como por magia. Vivia a vida de quintaneiro com regra de esquadro.
Uns vizinhos de tão díspares esquadrias morais só poderiam se aborrecer. Tudo começou por mor de umas ervilhas do senhor Adelino, semeadas antes da hora das migas. O vizinho da Bufarda, diligente aproveitador do que deus dá, tinha uns pombos no seu pombal. Ervilhas e pombos, uma atracção fatal, tão funesta a combinação, que os pombos apareceram mortos, envenenados com qualquer peçonha que nem aos cães aproveitaram. Foi um ai até se ouvir bradar um "OIÇA LÁ!" vinda da Bufarda, santo e senha para se iniciar uma conversa desagradavel lá pelo sossego do alentejo.
Já morreram ambos, mas lá aonde estiverem ainda estão de candeias às avessas, a endereçarem-se para as mais diversas partes, mal para todo o sempre.

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