Tuesday, June 17, 2008

Um chá, pelas cinco da madrugada

Esta noite vieste visitar-me, como o não fazias há muito tempo. Enquanto dormia voltei a ser filho.
Entraste sorrateiro, tal como fazias para me mostrar uns versos novos que tinhas congeminado na véspera, desta vez não bateste de mansinho na porta do meu quarto, entraste e sugeriste tomar um chá de cidreira, às dez para as cinco da madrugada. Desta vez não te mostrei os netos, mas desde já te digo que o Zé continua um galo doido, mas já gosta de brincar com palavras, tal qual como nós. O Simão és tu por uma pena.
Estás na mesma, pareces repousado até, lá aonde estás deves fumar umas cigarradas boas, sem ser às escondidas da mãe e dos médicos. Continuam iguais os teus olhos de azul marinho donde sempre vieram as palavras certas para me apaziguar as inquietações de todas as idades. Hoje estou outro, relativisado e com os teus assomos de paciência, mais aparente do que real. Agora sou um filho com rugas marcadas, e tu, pai, sem idade nem velhice, mas sempre com as mãos mais macias do mundo. Às vezes deixo crescer a barba a ver se me pareço contigo, mas não resulta, eu sou mouro e tu celta, nunca consigo ficar com esse teu ar de principe da Baviera.
Como de costume és o ouvinte atento, e mais uma vez, eu esqueço-me de te perguntar como estás, o que tens feito, aonde moras, se és finalmente feliz. Deixo-me estar falando das minhas encruzilhadas, da eterna ausencia de certezas sobre o nosso destino, matéria em que sempre nos entendemos muito bem, ainda que não o soubesses. A propósito, agora reparo, trazes aí o "Em Nome da Terra" do Virgílio Ferreira, o tal, que eu para te picar, dizia ser literatura senil, mas que ia sorvendo às tuas escondidas. Uma coisa me ensinaste, de grande utilidade póstuma, a memória é a unica eternidade que consigo reconhecer.
Não sei se passou muito ou pouco tempo, ainda não clareava quando o teu neto Simão chegou à minha cama para aí fazer ninho, e tu seguiste à tua vida.
Mas eu sei que qualquer dia, por aqui ou por além temos outra cházada.

3 Comments:

Blogger CCF said...

Também gosto do que escreves. Começei a ler uma vez que escreveste uma coisa bonita sobre Olhão, é a terra da minhã mãe. O meu avô era pescador mas naufragou duas vezes e depois da última começou a ter alucinações com sereias, teve que se tornar "mestre terra".
~CC~

12:16 PM  
Blogger apicultor said...

Essa das alucinações com sereias é romanesco...

3:35 AM  
Blogger Pedro said...

Sem duvida... esses ares de Principe da Baviera, de Celtibero sao as memorias que tambem eu tenho do Ze, teu pai.
Um abraco forte

11:08 AM  

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