Friday, July 25, 2008

A bufarda

Dá dó lá entrar, presenciar a agonia de um lugar aonde um dia um homem construiu um mundo. O pasto seco estala ao sol do meio dia, visão impossivel nos seus tempos de homem épico.
Chamava-se João José Barros, um dos muitos filhos de um cantoneiro de Monte Trigo, e era o ultimo dos neo-realistas da vida que conheci.
Fez de tudo um pouco, arrancou arvores de empreitada, trabalho ciclópico para arranjar campo de cereal como mandava Salazar, fez telha e lambazes num telheiro, carvão nos fornos, empreiteiro de ceifas, tudo fez para enganar a fome aos filhos. Um dia largou a serra de Portel, aonde era uma espécie de personagem de Cerromaior, e procurou as oportunidades da cidade . Arrendou a quinta da bufarda, que mais não tinha que uma casa modesta, um poço e umas oliveiras esparsas, aonde reinou por cinquenta anos. De dia era jornaleiro na quinta de um doutor e a ver os outros, aprendeu o engenho do oficio de quintaneiro, de noite praticava na bufarda, ao luar, ou alumiado pela lanterna que a mulher segurava. Inteligente, depressa aprendeu os segredos da quinta, amaciou as terras a poder de esterco e aiveca, plantou centenas de oliveiras que regou a balde, abriu um poço, construiu toda a espécie de cómodos para os animais, bem como no final da vida uma casa de banho digna do nome.
As suas mãos grandes de semeador, faziam milagres naquelas terras e estou a vê-lo carregar pela tardinha a carroça, com molhos de nabiças, beldroegas, espinafres e coentros, atados com a junça que apanhava nos valados, salpicá-los de água pra beberem o fresco, e partir pelas quatro da manhã, alumiado por um lampião de petróleo, estrada fora direito ao mercado de Évora, aonde ao nascer do dia todos os quintaneiros das quintas, chegavam nas suas carroças ronceiras, para fazer negócio . Esta volta durou anos, e com ela criou os filhos. Depois o ultimo dos rapazes casou e a estratégia teve que mudar.
Não deixaria a mulher noite escura, sózinha naquele ermo, sem nenhum homem a garantir-lhe a segurança, ainda assim não aparecessem alguns gaiatões a quererem fazer pouco dela.
Começou assim a época das suas grandes searas. A saber, o pimentão que ele tratava desde o criadouro nos alvores da primavera, depois muitos e grandes canteiros de terra milimetricamente armada para a rega, sem recurso a corda de nível, simplesmente a olho, aonde dispunha as plantas, grandes sorvedouras de horas de rega pelas canículas. Depois era colhê-lo, cortá-lo, salgá-lo e nos frios do inverno moê-lo, acondicioná-lo e levá-lo ao destino nos talhos para tempero das carnes. Tal industria não seria possivel no desvario dos dias de hoje, logo uma qualquer inteligencia das ASAE, viria destruir a vida a este homem, sem ponta de remorso.
Depois havia os batatais, e as suas toneladas de batatas encheram a barriga a muita gente nos restaurantes de Évora, que ele fornecia de bicicleta, levando uma saca de cada vez. Os perus criados pelos filhos nos restolhos, eram o subsidio de natal. O azeite de que ele colhia centenas de litros por ano, era traspassiado porta a porta em garrafões improvisados, e dos clientes se despedia com um "Saúde para o comer!"
Teria que ser o pâncreas a levar este homem visceral e de emoções destemperadas. As suas cóleras eram temíveis, que o digam os filhos e os animais. O que quer que lhe não obedecesse, provava o gosto das fueiradas no lombo até se humildar, e até o Júlio do Abade, que era fraca rez, um belo dia, sentiu a zunida de um machado ao rés das orelhas ,quando passou em dia aziago, buzinando ao portão da bufarda, o que foi entendido como andar a fazer pouco.
Parece que ainda lhe vejo a silhueta mourisca, com um pano por baixo do chapeu de feltro preto, empapando o suor, a lavrar em diálogo com o besto:
-Ao rego!
Estalava com a lingua em incentivo, e tornava
-Aíii! mula de um real cabrão que anda folgada....

1 Comments:

Blogger Luisa Condeço said...

E parece que ainda o oiço: "Oh lavaradora, há gente?", Obrigada por este pedaço de prosa poética, tu escreves tão bem que o vi entre as tuas linhas. Beijos

10:55 AM  

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