Wednesday, December 27, 2017

Ajudada pela fé, Dona Silvina foi sempre decidida e animosa nos caminhos do bem. Reinava no monte de São Bento desde que vinda do seu verde Minho, por comboio e carros de parelha, ali chegou com as suas arcas de enxoval e dobrões de oiro de lavradora minhota para desposar o lavrador Vargas, homem imponente em terras e tamanho, trajando a capote, insigne bigode e chapéu de ganadeiro como lhe pertence.
O casório foi tratado por sua madrinha de vastas e beatas influências, ter tido um casamento romântico não foi questão que se lhe colocasse, poder governar uma casa assim, ter meios para ter criadas em quantidade, frequentar dignamente as missas e novenas, poder obsequiar a paróquia, ter um nome respeitável, eram prendas mais do que suficientes para uma mulher da sua condição.
Mariana, filha de um porqueiro, servia lá em casa, já estava ensinada a cumprir com as dobras dos lençóis na cama, com a conta certa do açúcar no chá, fazia esses de limão, era quase uma boa criada para os apertados critérios de Dona Silvina. Naquele dia em que o ventre avantajou aos olhos da Senhora, começou a desmerecer rápido.
- Quem é o pai?- Perguntou a lavradora receosa, isto com os homens, mais a mais de posses, nunca se sabe, há sempre alguma disposta a tentar.
Mas não, desta vez não foi o lavrador a atentar nas delícias do paraíso escondido, foi o Gil, servente nas cocheiras do monte, quem no pouco vagar que as bestas lhe davam, ainda teve artes de se ir rebolando nos fenos com a Mariana e dessa paródia começava a avultar resultado. Estava pejada!
Ficou chocada Dona Silvina, a sua casa era decente e temente a Deus, não esperou que Vargas viesse do alqueve para de lá por a mexer o casal lascivo que se foi acolher à aldeia. Quando a criança nasceu, enraladinha, mas loira e branquinha como a farinha trigal, nenhum dos dois tinha trabalho, estavam dados à caridade de parentes. A extrema angústia levou-os a bater novamente à porta de Dona Silvina, não tinham meios de alimentar a criança, comprar o leite do boticário, pois Mariana estava seca.
Dona Silvina condescendeu em recebê-los, tinha enviuvado havia pouco tempo, um tartaranho fatal levou-lhe o lavrador e vestiu-se-lhe o negro para o resto da vida. Dona Silvina não parecia conhecer comoções com as penas alheias, mas não deixava geração e talvez se encantasse com olhos azuis da menina, talvez lhes encontrasse pedigree na primeira comunhão, vendo bem poderia ter uma afilhada. Com a maior das clarezas ditou a sua lei:
- Primeiro, casamento!
- Segundo, baptizar a menina de Beatriz, nome da minha mãe que Deus chamou.
- Terceiro, se a menina se portar bem e for aplicada nos estudos, providenciarei fazer dela professora, profissão muito adequada a uma mulher de respeito.
- Quarto, nem pensar em terem mais filhos! Se tal acontecer vão outra vez para a rua, o mundo é comprido, tratam de desaparecer mais a gaiata.
Ficaram contentes e aliviados mas logo perceberam que a lei de Dona Silvina continha mais extensões e clausulas, e que as tiranias são omnipresentes e omnipotentes como Nosso Senhor. Gil e Mariana dormiam sob o tecto da lavradora em quartos separados de modo a que não se produzissem intimidades, ela continuava a servir, ele era moço de recados, ia à cidade fazer avios de compras levando um seirão de empreita que tornava cheio de mercearias e comeres. Assim foi envelhecendo, alargando e atarracando, homem casado sem mulher, alvo da chacota dos outros que o desafiavam a desobedecer à tirania da soberana do monte, mas Gil só pensava na gaiata, em vê-la professora.
Foi o dia mais lindo da sua vida, a filha, professora de escola primária.
Gozou-o pouco tempo, no dia seguinte ainda teve tempo de num relâmpago ver chegar o sonho de Mariana, dizem que muito sonhamos ao chegar ao último corredor da existência, tudo nos aparece donde ninguém volta para contar, vinha ela deitada nas palhas da cocheira, tal qual o foi na noite em que foram homem e mulher e se misturaram uma só vez em vida.

Dona Silvina, tirana e decrépita, pagou um lindo funeral ao pai da sua afilhada.

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