Quando eu e o Dick viemos para cá, este era um país calmo,
não havia comunistas, o Salazar não deixava.
Temos uma vida pacata, não vemos televisão, não queremos
saber dos desmandos deste mundo, das guerras, destes papas inimigos da
tradição, da miséria que para aí há. Não pense com isto que me não importo com
os demais, toda a vida fui voluntária, na Cruz Vermelha, na Cáritas, na luta
contra o cancro que agora me roi por dentro, sei ver a bondade no olhar das
pessoas e dar graças por quem me faz o bem. Todos os dias rezo um Pai Nosso
pelo meu pai, um santo a quem os comunistas mataram. O Dick faz traduções de
inglês, temos pouco dinheiro mas de pouco precisamos, nem casa temos, vivemos
num apartamento alugado em Benfica, não tivemos filhos, nem sei bem quem vai
ficar com os meus livros, minha companhia de toda a vida. A minha vida agora
que me mexo mal, é ler na marquise enquanto fumo, o Dick vai às compras, traz o
Daily Mail, já pouco posso sair, são oitenta e três anos, fazemos tempo nem sei
bem para quê, talvez nos irmos despedindo um do outro.
Em Génova fui tão feliz quanto infeliz, o meu pai era um
homem bom e que bem serviu o Duce, um pai dedicado e carinhoso, não perdoo o
que lhe fizeram e à nossa familia a quem espoliaram de tudo. Os comunistas são pessoas
más que cobiçam o que é dos outros, não olham a meios para destruir quem tenha
alguma coisa, se visse a cara de felicidade, a berraria daquela gentalha
mostrando o meu pai morto e dependurado num candeeiro, tal como fizeram ao Duce
e à Petacci, gente que andou comigo no liceu a cuspir à minha passagem, que
invadiu a nossa casa e levou de lá tudo quanto pode, só deixando excrementos
pelo chão. A minha mãe agarrou em mim e na minha irmã, fugimos para casa do tio
Matteo no Piemonte aonde nos escondemos até que as coisas acalmassem, quando
voltámos a Génova já nada era nosso. Poucos meses depois do fim da guerra a
minha mãe faleceu, mais de desgosto que de outro mal qualquer, a minha irmã
arranjou namoro com um primo e lá se organizou. Eu cruzei-me com o Dick numa
esplanada, era amável, falava sereno em voz baixa e trajava à civil quando não,
lhe não teria dado a minha atenção, estava de licença, era soldado de
infantaria, inglês todavia. Só casei com ele porque me prometeu nunca ter morto
nenhum italiano, apenas esteve a combater alemães.
Hoje é Natal, vamos jantar a casa da Maria de Fátima e do
José, levamos uma garrafa de Nocello, têm a amabilidade de nos convidar sabendo
que não temos mais família, são muito agradáveis e atenciosos, o filho deles é
educado e gosta de conversar com o Dick sobre pássaros, tocamos à campainha e o
José aparece sorridente, gravata grená, um firme passou bem com ambas as mãos,
tem uns olhos que me não enganam, trata-se de boa gente.
É verdade, apesar de serem das esquerdas são boas pessoas.
Feliz Natal!
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