Tenho setenta anos e não tenho natureza para estar sentado a ver os urtigões crescer na minha rua. As minhas ruas não têm uma erva e andam varridas. Fiz esta quinta, abrindo póços, plantando o olival, amanhando as casas, colhendo todas as pedras, e aqui arranjei vida para criar quatro herdeiros. Trabalhei muito, de dia e de noite, e ainda não parei. Nesta idade já me não sobeja tempo, nunca sobejou, aliás.
Letras não tive, o meu pai, que deus tem, não viu meios de me por na escola, mas nem por isso me atrapalhei. Aliás, um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbada, não gosto nem de ver. Se algo me falta, é o meu mais velho, já se foi, deu-lhe um tartaranho assim de repente, ainda nem cinquenta anos tinha, cantávamos os dois modas, quando matávamos os porcos ou pela Festa. O cante, a voz, acabou-se-me aí, nesse dia em que me vieram dizer que caíu morto, de repente, sem dar fé nem ui.
Vim para cá há cinquenta anos, na mesma altura, ali ao lado, na Cozinheira, morava o senhor professor, vindo de Lisboa. Nada sabia da vida do campo, veio com ideias de se fazer lavrador, fazendo fé das coisas que lia nos livros. Assim é hoje o neto dele, bom rapaz embora custoso de entender. O senhor professor acordava cedo e corria a quinta em pijama, se fosse Verão vestia uns calções e andava de perna à mostra, aos saltos por cima dos restolhos. Também tinha um capacete, esquisito e branco, como já vi na televisão nos filmes das Áfricas. Mandava semear a quinta com aveia e cevada, algumas vezes me deu a aceifa de empreitada. Tinha uma vinha que dava trabalho ao pessoal, azeitona e um laranjal que mandou dispor. Tinha a mulher em Lisboa e uma amiga que avistava às escondidas. Mas mal escondida. Era uma mulher fina, de óculos escuros que ia e vinha num carro sem capota e que algumas vezes se deixou ver de fugida. Foi por ela que um dia, pela manhã, ainda de pijama e com os cabelos todos no ar, ele mandou o Barranha, que lá trabalhava, no mês de Maio ir podar uma figueira que estava no meio de uma seara de aveia, bem longe de casa, lá na outra ponta da quinta.
Olho para a velha a dormir, ao lado na cocheira, está a mula a dormir em pé, bate com os cascos no chão, não me deixa descansar, sou nervoso e passo as noites a esgravolhar na vida, penso que se amanhã eu abalar, cresce a matiçe nesta quinta que fiz por minhas mãos, ninguém irá caiar os muros nem o portão, os pastos chegam à altura das arvores, a mulher vai ter que sair daqui para casa dos filhos, a mula vendida aos ciganos e as capoeiras ficam vazias, sem um galo que cante. É assim a vida, muita obra, muita guerreia, mas tudo está por um fio, um sopro.
Letras não tive, o meu pai, que deus tem, não viu meios de me por na escola, mas nem por isso me atrapalhei. Aliás, um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbada, não gosto nem de ver. Se algo me falta, é o meu mais velho, já se foi, deu-lhe um tartaranho assim de repente, ainda nem cinquenta anos tinha, cantávamos os dois modas, quando matávamos os porcos ou pela Festa. O cante, a voz, acabou-se-me aí, nesse dia em que me vieram dizer que caíu morto, de repente, sem dar fé nem ui.
Vim para cá há cinquenta anos, na mesma altura, ali ao lado, na Cozinheira, morava o senhor professor, vindo de Lisboa. Nada sabia da vida do campo, veio com ideias de se fazer lavrador, fazendo fé das coisas que lia nos livros. Assim é hoje o neto dele, bom rapaz embora custoso de entender. O senhor professor acordava cedo e corria a quinta em pijama, se fosse Verão vestia uns calções e andava de perna à mostra, aos saltos por cima dos restolhos. Também tinha um capacete, esquisito e branco, como já vi na televisão nos filmes das Áfricas. Mandava semear a quinta com aveia e cevada, algumas vezes me deu a aceifa de empreitada. Tinha uma vinha que dava trabalho ao pessoal, azeitona e um laranjal que mandou dispor. Tinha a mulher em Lisboa e uma amiga que avistava às escondidas. Mas mal escondida. Era uma mulher fina, de óculos escuros que ia e vinha num carro sem capota e que algumas vezes se deixou ver de fugida. Foi por ela que um dia, pela manhã, ainda de pijama e com os cabelos todos no ar, ele mandou o Barranha, que lá trabalhava, no mês de Maio ir podar uma figueira que estava no meio de uma seara de aveia, bem longe de casa, lá na outra ponta da quinta.
Olho para a velha a dormir, ao lado na cocheira, está a mula a dormir em pé, bate com os cascos no chão, não me deixa descansar, sou nervoso e passo as noites a esgravolhar na vida, penso que se amanhã eu abalar, cresce a matiçe nesta quinta que fiz por minhas mãos, ninguém irá caiar os muros nem o portão, os pastos chegam à altura das arvores, a mulher vai ter que sair daqui para casa dos filhos, a mula vendida aos ciganos e as capoeiras ficam vazias, sem um galo que cante. É assim a vida, muita obra, muita guerreia, mas tudo está por um fio, um sopro.
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