Saturday, February 10, 2018

Deus consta que existe, mas não se lembra Barbinha de o ter visto algum dia. 
Barbinha está já enfadada com o tempo, ele é só busaranhos, o panamá russo não lhe para na cabeça, o seu praguejar ágil percorre cerros e barrancos num trovejar de maus modos. Nada é a desejo, só ventanias e do mais, minguas.
Traz a burra pela arreata, vem da serra com o carrego das arreigotas para aquecer as casas aonde se recolhe mais o besto que percorre o corredor até ao quarto do fundo, chão de terra, rocha e palhas trigueiras, eis o soalho dos seus cómodos.
Barbinha dorme na sala da salgadeira, não casou, ao menos ninguém lhe apoquenta, só se rala com a vida que lhe calhou farrusca e empoeirada, para a sua mesa sabe-o ela, não há ninguém que se faça convidado. Miga couves com farelos para as galinhas, dá a serralha aos coelhos nas gaiolas, levanta a saia para dar de corpo no quintal, o dia já aborrece mas não se completa sem entrar na venda do António, sempre tesa, espanta as conversas como se fossem moscas, só quer molhar o bigodinho tenso num bagacinho antes de recolher à enxerga pelo sol-posto. Sai tão mal encarada como entrou, resmordendo coisas no seu modo de carapeto seco. O vento é que não se cala.


Nunca Barbinha viu a Deus, mas a um bom naco de toucinho ela diz Amen.

Thursday, February 08, 2018

_ Não te dói nada?
- Ora, não! Tinha que doer?
Anda aí uma sinfonia dos ais: ai isto, ai aquilo, ai a perna, ai as costas, ai agora: foi até para isso que se inventaram os virtuosos, para acudir a essas dores do esqueleto e suas carnaduras, excluindo bem entendido o ai amor que pertence a outras avarias.
Eu, é mais nas costas, não sei como foi, que me custa mexer o braço, nem uma punhada em condições consigo dar sendo caso disso. Mas aonde vou?
É só pantominas, havia um no Algarve, o Idalécio, grande disparate de homem, tinha mais de cem quilos, certo dia fui lá com o meu pai e andava ele de posse de um homenzito pequenino, levantou-o no ar agarrado pelas mãos, quando o largou disse que já estava amanhadinho, só assim, mais nada, o outro abalou deixando uma nota, mas pelo andar via-se que ia tão torcido como para lá entrou e ainda com menos qualquer coisa. O ucraniano que havia aqui era outro, tinha sempre freguesia e vinda de bem longe, era um corremaço de gente, mas chegava-lhe bem na bebida, até se me endireitaram logo as costas quando certo dia o vi de joelhos aos saltos em cima do lombo de um sujeito que lá foi cair a queixar-se dos bicos de papagaio. Abalei de costa bem direita, ainda que me doesse, enquanto o outro se amanhava lá com o bafo a aguardente e as calcadelas que o Yuri lhe dava. Ná! massagens e pantominas até sei como principiam, agora como acabam, isso já é outra história…
- Hé companheiro!- Assim bradou o homem comprido e com três cabelos.
O homem era estranho, vestia-se mal, parecia gente da passa, mas falava bem, com bonita maneira. Eu estava desmanchado das costas e tinha que andar a cavar com um pique e já não tinha maneira de estar. Ele trazia um frasco grande da tofina na mão com uma caldivanada amarela aonde boiavam umas cabeças de alho, dizia ser tratamento para as costas, coisas naturais, era só esfregar cachaço abaixo e ficava logo bom e não queria receber dinheiro, bastava-lhe fazer bem a alguém que já recebia em felicidade. Tanto falou de olhinhos a brilhar como estrelas, que dei comigo na cama, de roupa puxada para cima- estava lá a mulher comigo, não se ria que não tinha maldade nenhuma-, e o homem todo contente a untar-me as costas lá com o líquido dele. Bem, parecia melhor até me querer mexer, mal tive ideia de me levantar, as dores eram facas na espinha. Adeus, adeus, Deus lhe pague que não tenho troco.
Ah! Fado de um cabrão!

Wednesday, February 07, 2018

Podia ser carnaval mas era dia de funeral.
A meio da manhã, na Venda da Cruz, já ao balcão diante daquele pássaro, muitos copos de tinto estavam despejados. Estava quase na hora de sair para o cemitério mas a algazarra era muita, galhófa, esquilas a retinir, o homem de cabelinho branco e barriga de vida airada, era o cómico eterno de todas as larachas. 
- Estás desmorecido porquê, ò toleirão?- Arremeteu ele 
- Tio! É o funeral do meu irmão.
Já nem ouviu a resposta, o seu carnaval seguiu para outra esquina, arrastando os pés.
Ficámos todos a murmurar que toda a vida foi assim, nada lhe chega ao pêlo, é festa em todas as horas e lugares enquanto viva, nunca fez nada, a sorte foi ter-se empregado no estado aonde se foi rindo e queixando de dores nos intervalos da risota.
- Fui sempre parvo! Mas olhem, tenho mais dinheiro do que terra.
E continuaram as proclamações até à hora das despedidas. Nós por cá, vamos cavar na horta, ajuda a levar a vida.




Clemente Pestana é um coração sem eira nem beira, rara doença do espirito para a qual não sabe de paliativo, talvez o tempo lho construa.
Não sabemos em qual esquina da vida se estragou, diz que já amou, demais até, largou a pele e a alma até perder o norte e esvaziar-se. Como é seu costume não foi nada, sobreviveu, a vida é um lugar de surpresas, encantamentos, e essa porta aberta ao desconhecido que espreita, deu sentido a uma forma de solidão escolhida. Tem dias em que estar só é apenas consentido, falta-lhe alguém a quem abraçar em casa, alguém para dizer que não é nada, nada há que temer, estamos aqui. Outros dias em que saboreia não precisar mudar nada no seu quotidiano caótico, poder fazer tudo ou nada e sem tensões ácidas. Volta e meia, muitas vezes se encanta por esta ou aquela mulher que lhe ofereça a benevolência de para ele olhar, todas sente magnificas, por isto ou aquilo que umas têm e outras não, todavia o caos sensível. Ele, incompleto, gostaria de as agasalhar a todas no seu coração se isso coubesse na vida.


Diz estar exausto de sofrer e fazer sofrer, será uma desculpa que arranja para si mesmo, ser sem consequência? Estará cansado de viver demais, pensar demais? Comove-se com os casais cúmplices que vê sentados em restaurantes, com os beijos apaixonados e os olhos brilhantes dos amantes que vê por aí, como nos filmes. Aliás adora ver filmes de amor, com muito amor, sofre de ternura. E caos.
Tenho setenta anos e não tenho natureza para estar sentado a ver os urtigões crescer na minha rua. As minhas ruas não têm uma erva e andam varridas. Fiz esta quinta, abrindo póços, plantando o olival, amanhando as casas, colhendo todas as pedras, e aqui arranjei vida para criar quatro herdeiros. Trabalhei muito, de dia e de noite, e ainda não parei. Nesta idade já me não sobeja tempo, nunca sobejou, aliás.
Letras não tive, o meu pai, que Deus tem, não viu meios de me por na escola, mas nem por isso me atrapalhei. Aliás, um homem atrapalhado é pior que uma mulher bêbada, não gosto nem de ver. Se algo me falta, é o meu mais velho, já se foi, deu-lhe um tartaranho assim de repente, ainda nem cinquenta anos tinha, cantávamos os dois modas, quando matávamos os porcos ou pela Festa. O cante, a voz, acabou-se-me aí, nesse dia em que me vieram dizer que caiu morto, de repente, sem dar fé nem ui.
Vim para cá há cinquenta anos, na mesma altura, ali ao lado, na Cozinheira, morava o senhor professor, vindo de Lisboa. Nada sabia da vida do campo, veio com ideias de se fazer lavrador, fazendo fé das coisas que lia nos livros. Assim é hoje o neto dele, bom rapaz embora custoso de entender. O senhor professor acordava cedo e corria a quinta em pijama, se fosse Verão vestia uns calções e andava de perna à mostra, aos saltos por cima dos restolhos. Também tinha um capacete, esquisito e branco, como já vi na televisão nos filmes das Áfricas. Mandava semear a quinta com aveia e cevada, algumas vezes me deu a aceifa de empreitada. Tinha uma vinha que dava trabalho ao pessoal, azeitona e um laranjal que mandou dispor. Tinha a mulher em Lisboa e uma amiga que avistava às escondidas. Mas mal escondida. Era uma mulher fina, de óculos escuros que ia e vinha num carro sem capota e que algumas vezes se deixou ver de fugida. Foi por ela que um dia, pela manhã, ainda de pijama e com os cabelos todos no ar, ele mandou o Barranha, que lá trabalhava, no mês de Maio ir podar uma figueira que estava no meio de uma seara de aveia, bem longe de casa, lá na outra ponta da quinta.
Olho para a velha a dormir, ao lado na cocheira, está a mula a dormir em pé, bate com os cascos no chão, não me deixa dormir, sou nervoso e passo as noites a esgravolhar na vida, penso que se amanhã eu abalar, cresce a matiçe nesta quinta que fiz por minhas mãos, ninguém irá caiar os muros nem o portão, os pastos chegam à altura das árvores, a mulher vai ter que sair daqui para casa dos filhos, a mula vendida aos ciganos e as capoeiras ficam vazias, sem um galo que cante. É assim a vida, muita obra, muita guerreia, mas tudo está por um fio, um sopro.