Sunday, September 01, 2013


Uma parte do mundo está ali, à vista, no poial de uma taberna. Há sempre alguém para me mostrar uma evidência qualquer:
- A cadela é mais branda do que o cão!
Fico sempre surpreso, é que mesmo que eu me quisesse desviar, colho sempre uma frase à espreita para ser escrita. 

Só uma vez a vi e foi de esgalheireta.

Era mulher grande, comprida mesmo, e muito loura. Nesse dia, ela apareceu aí num carro sem capota que andou aí para trás e para diante, a dar fé de quem estava por cá.
O senhor professor, as mais das vezes, deveria ir esperá-la à estação aonde se apearia do comboio, vinda de Lisboa, escondida do marido, parece que era doutor, arquitecto ou lá o que fosse. O senhor professor logo a agasalhava dentro de casa e com certeza que não estariam lá fechados a jogar às cartas, o certo é que não se deixavam ver. Eu trabalhava lá no monte mais o Barranho e nem sempre tínhamos serviço destinado. Naquela manhã, era Maio, ainda cedo para meter a foice na seara de aveia, bati à porta, bradei pelo homem, a ver o que iriamos fazer. Apareceu descomposto, em calções, à porta, cabelos no ar como se houvera visto um bicho e embatucou diante de mim:
- Que hás de fazer João? Olha, vai podar a figueira grande…
Estava visto que ela lá estava. Lá largámos a rua do monte com o machado e o serrote, escarapantados, para a outra ponta da quinta, donde nem o monte se avistava, nunca na vida tínhamos visto podar figueiras, ainda menos em Maio, com os figos lampos a tombarem para o chão, espéguinhando a seara, que tudo queria menos o reboliço que lá fomos fazer, a derrubar  pernadas, enquanto o senhor professor se espreguiçava mais a amiga no seu sossego que se imagina desinquieto.
Já o Barranho, muito amigo de conversas, teve assunto de paródia na hora de enregar nos copos, à taberna da Parreirinha, ali aos Leões. Nunca ninguém vira pisar um aveal para podar uma figueira, mas o homem manda, o homem é que sabe.

 

Moravam os dois sozinhos, em casa aonde nenhuma mulher entrou, depois que saiu a santa mãe no esquife. Cozinhavam e faziam lume no chão terroso da casa, dormia cada um em seu catre, mas não no quarto, que ainda tinha o palhuço do tempo em que o pai lá arrecadava o burro, à falta de arramada ou outros cómodos aonde agasalhar o animal.
Xico dava ares a ser mais esperto, enquanto Zé tendia a ser um bocadinho parvo. Não podiam os irmãos ser mais diferentes, Xico já em novo tinha boa figura, o que lhe valeu os encantos de lavradora, lá para os lados de Selmes, amores tão assanhados como rápido abreviados, quando o Vargas soube andar a filha enrabichada por um borrabotas, resolveu a coisa como manda a tradição dos que já cá estavam, pregando brava sova de correadas na moça e deixando-a trancada em casa até lhe passarem as fantasias românticas. Quanto a ele, Xico, deixou-se convencer com o calhafuz do lavrador apontado ao peito e carregado a zagalotes.
Não voltou Xico a experimentar na vida, aquela palpitação de âmago que revira as entranhas dos amantes e tempera a existência.
Já Zé não foi contemplado com o dom da visibilidade aos olhos das mulheres. Era pequenino, farrusco, de cabelo crespo como uma palmeira das que nascem bravas no barranco. Ainda mal lhe assomava o buço sobre a boca e já tomava o caminho da cidade aonde frequentava a casa das madames, gastando o soldo da jornada e ganhando lugar na imortalidade, pela assídua fiabilidade do seu vício. Sabia sempre escolher a maior que lá houvesse, sempre teria mais corpo amável, e como desde novo era garganeiro, nela se encarrapitava e fazia render a noite, horas adiante sem desfalecimento, em trabalhos esforçados, que se tornaram lendários na memória daqueles lugares. Não era homem de meias doses, nem meias horas, e só assim alguma mulher pôde reparar na sua existência.
 Xico ia à pesca para o moinho de pernas e de lá vinha algum peixe bem como qualquer coelhito que se tivesse posto a jeito. No caminho do moinho, aonde semeava abóboras na beira da ribeira, Xico ia espalhando cigarros pelo caminho para de regresso os ir descobrindo debaixo das pedras e fumar tais revelações. Os trocos viviam sempre contados. À tardinha depois da sesta, desciam à venda do Raposo a marcar encontro com uns tintos. A taberna, cheia nesses tempos áureos, parava para os ouvir. Xico tinha lábia para o seu número preferido:
- Zéie!
- Hum…- torna o outro
- Sabes contar?- bem sabia ele
- Sêie!
 Abrindo a mão cheia de 2 moedas de tostão:
- Quantas moedas  faltam aqui para um maçinho de tabaco?
E lá aparecia o resto.
Siga o vinho e vá de esfumaçar até ser escuro.

Nos olhos marítimos de Jerónimo, muitas princesas e rainhas o foram por um dia, e neles se afogaram sem contemplações de alma. Jerónimo, de bastas melenas alouradas do sol, desafia os dias ao acaso.
A sua aventura começou na baixa nazarena, criado aos baldões em casa de pai abrutalhado pela bebida, a ir ao mar, ainda criança nas traineiras, à sardinha ao largo das berlengas, o miúdo foi crescendo com medo e porradas, até ganhar o gosto de os desafiar. Um dia, ainda menor mas já com estampa de rapazão, virou as costas à casa aonde imperava a demência alcoólica do pai e fugiu para bem longe, para outro porto de pesca em busca de uma traineira que o levasse para a vida, se possível algures, por bandas do sol posto.
Não arranjou barco, antes companha de um desembarcadiço que vivia de fazer pão e comer laranjas bravas num monte alentejano sem água, luz, eira nem beira. Ente os sobreiros da Boavista, estava plantado o modestíssimo monte de paredes caiadas, aonde uma micro coletividade masculina desenrascava a vida sem outras preocupações que comer, viver o sol e o mar próximo, cozer pão duro e secar fruta. Jerónimo atraía público feminino suficiente para a animação da vizinhança, idosa e circunscrita aos seus metros quadrados de mundo. Elas apareciam, umas louras, outras morenas, grandes ou pequenas, a pé, de bicicleta ou trotineta, até de automóvel, vejam lá o que eram as ânsias.
Entrou na mitologia daqueles sítios, a aura de bom bandido de Jerónimo, esparramado na praia do Pessegueiro, nuzinho como Adão no paraíso, cuidando do tisnar de suas curvas que muito proveito rendiam nos favores das mulheres. Estava naquele desfrute de paraíso quando ouviu chegar a guardilha ofendida com tal ousadia, homem nu na praia a pedir ordem de prisão, em defesa da reputação nacional, pátria de bons e sãos costumes. Jerónimo não se ficou quieto, chamou-os a si, jogou-se ao mar e nadou, nadou até à ilha do Pessegueiro, donde o puderam avistar fazendo gaifonas à autoridade e dizendo o que bem lhe apetecia.
No dia seguinte, já ele lá estava outra vez, deitado, nuínho, sonhando com os seus dias de vida propícia ao prazer, sempre com aqueles olhos, topázios de infinitos encantos para princesas encantadas, fossem elas mouras ou frauleines.

José Paulo do Nascimento era um galo doido, assim dito por seu neto José, simplesmente José, sem Paulo, ao arrepio da tradição familiar que mandava por o Paulo a todos os varões. Seu neto estava já ao abrigo da maldição da família, já tinha tido um irmão José Paulo, morto criança em Africa com as sezões, e ainda assim insistiu e foi pai de um nado morto de nome igual ao do maldito.
 O maldito tinha mesmo sido um doidivanas, que arruinou o nome da família para toda a eternidade sem se dar conta de tal, no dia em que a cigana Lucinda, mulher graúda e de apetitosa que estacionou na avenida chegada num circo, achando-se despeitada, sensualidade mexeu os lábios carnudos e em seu fogo rogou:
- Maldito sejas até ao fim dos dias e que o teu nome não volte a vingar tal como o sal não deixa vingar a verde erva.
Não nasceu ele para trabalhar, sendo filho de uma grande fortuna de Trancoso, o boticário José Paulo da Silva, um zé ninguém nascido em Souto Maior e que emergiu com o liberalismo  a poder de trabalho, poupança e boas companhias politicas, deixou o pai em herança uma fortuna colossal em numerário e propriedades à qual os herdeiros António Augusto e José Paulo do Nascimento deram diferentes fins.
 António era um maçónico filantropo, acreditava nas virtudes da instrução, força libertadora do ser humano oprimido pela ignorância, à mercê da igreja e dos poderes. Era republicano, laico, socialista, e como tal aplicou a sua herança no ensino voluntário, gratuito e generalizado de todos os que se apresentassem à sua escola.
Já José Paulo era um epicurista, a política não lhe interessava, queria era desfrutar a vida, viajar a Paris, cidade das luzes, ir à ópera, tocar piano, namorar quantas mulheres houvesse, amesendar-se em bons restaurantes, era esta a sua vida linda. Muito penava sua mulher Leonor que não chegou a velha de tantas ausências e arrelias. José Paulo do Nascimento, aplicou-se em converter metodicamente uma grande fortuna numa exígua fortuna. Finalmente já viúvo, ainda arranjou mais uns quantos filhos, a juntar aos três do matrimónio, os Caçapos, filhos da Rita Caçapa, criada de servir de sua santa senhora já falecida. Quem não gostou da ideia foi sua mãe, que teimou em chegar aos cem anos, mantendo em si a salvo uma parte da herança do pai boticário e vendo ser delapidada a outra parte pela voracidade do filho. Foi com alívio que o enterrou em Nossa Senhora da Fresta e suspirou:
- Foi milagre de Nosso Senhor ele ter ido primeiro do que eu, se assim não fosse os meus netos não herdavam nada.
O nome José Paulo, esse nunca mais ninguém o pôde herdar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Januários, Josués e outros que tais, moços taludos e guerriões, tão depressa amigos, como de mal uns com os outros.
Nesse tempo a aldeia tinha muita gente e sendo muitos, bastante guerreavam pelas tabernas e seus poiais. Nunca gostei de barulhos, sempre fui pequenote e eles corpanzudos, havia sempre algum já bebido que começava a implicação, espenicando aqui ou ali, a ver por onde pegava. Eles eram abrutados, se um falava alto, o outro tinha que soar mais ainda, sempre em crescimento, até que por vezes saltava uma punhada direita às ventas de algum, podendo até sobrar para alguém que não estivesse no barulho. Eu fazia que não era nada, a ver se a moenga girava para outro qualquer com mais posses para lhes dar troco.
No dia seguinte, voltavam a falar-se e parecia que não fora nada. No que eles bem se entendiam, era a receber os das outras aldeias à pedrada quando cá havia baile, e vinham de fora fazer olhinhos de carneiro mal morto às nossas, as cá do monte. Nestas e noutras guerreias, eu nunca me tirei do lado de fora. Rapazes, já se sabe…

Brisa de levante, as cigarras pulam aos ouvidos.
Jerónimo vem do cerro gordo com os coelhos pendurados, direito á venda do Raposo, aonde chegará o senhor Domingos a juntar a caça que todos para lá carregam, e que fará chegar à mesa dos senhores, lá na cidade distante. O irmão fugiu no ano passado com a mulher do Gustavo, nunca mais apareceram, foram sem deixar rasto, no estrangeiro ganham a vidinha deles longe dos enredos que cá ficaram.
Jerónimo, o irmão com natureza para se deixar ficar, sem atrevimento sequer para arranjar mulher, destinado pelo acaso e inércia a ficar em casa, dado à mãe, aos seus comeres. Ela trata das roupas, põe comida na mesa, e até lhe faz meia de calçar. A sua casa é na sociedade com os demais, igualmente moços solteiros de todas as idades, uns sem ninguém, outros com mãe ou irmã a bradar-lhes para jantar à hora aprazada. É com os outros que há paródia, conversas correntes, talentos no jogo da carta, caracóis no pires e o Benfica para sofrer.
Jerónimo é novo e sofre do coração, um dia passou ali uma professora e o rasto do seu perfume indicava um caminho direto à felicidade que Jerónimo não alcançou por falta de palavras. Ficou a poeira da carreira que a levou no final do ano para o desconhecido do seu futuro de moça casadoira, peito saltitante no vago decote, lá se foi empoleirada no garbo dos seus saltos, para bem longe do olhar vergonhoso de Jerónimo, que quedo ficou na paisagem, sem palavras achadas, impregnado de cheiro a mato e solidão.

 

Castro Marim, 1 de Setembro de 2013