Ajudada pela fé, Dona Silvina foi
sempre decidida e animosa nos caminhos do bem. Reinava no monte de São Bento
desde que vinda do seu verde Minho, por comboio e carros de parelha, ali chegou
com as suas arcas de enxoval e dobrões de oiro de lavradora minhota para desposar
o lavrador Vargas, homem imponente em terras e tamanho, trajando a capote,
insigne bigode e chapéu de ganadeiro como lhe pertence.
O casório foi tratado por sua madrinha de vastas e beatas
influências, ter tido um casamento romântico não foi questão que se lhe
colocasse, poder governar uma casa assim, ter meios para ter criadas em
quantidade, frequentar dignamente as missas e novenas, poder obsequiar a
paróquia, ter um nome respeitável, eram prendas mais do que suficientes para
uma mulher da sua condição.
Mariana, filha de um porqueiro, servia lá em casa, já estava
ensinada a cumprir com as dobras dos lençóis na cama, com a conta certa do
açúcar no chá, fazia esses de limão, era quase uma boa criada para os apertados
critérios de Dona Silvina. Naquele dia em que o ventre avantajou aos olhos da
Senhora, começou a desmerecer rápido.
- Quem é o pai?- Perguntou a lavradora receosa, isto com os
homens, mais a mais de posses, nunca se sabe, há sempre alguma disposta a
tentar.
Mas não, desta vez não foi o lavrador a atentar nas delícias
do paraíso escondido, foi o Gil, servente nas cocheiras do monte, quem no pouco
vagar que as bestas lhe davam, ainda teve artes de se ir rebolando nos fenos
com a Mariana e dessa paródia começava a avultar resultado. Estava pejada!
Ficou chocada Dona Silvina, a sua casa era decente e temente
a Deus, não esperou que Vargas viesse do alqueve para de lá por a mexer o casal
lascivo que se foi acolher à aldeia. Quando a criança nasceu, enraladinha, mas
loira e branquinha como a farinha trigal, nenhum dos dois tinha trabalho,
estavam dados à caridade de parentes. A extrema angústia levou-os a bater
novamente à porta de Dona Silvina, não tinham meios de alimentar a criança,
comprar o leite do boticário, pois Mariana estava seca.
Dona Silvina condescendeu em recebê-los, tinha enviuvado
havia pouco tempo, um tartaranho fatal levou-lhe o lavrador e vestiu-se-lhe o
negro para o resto da vida. Dona Silvina não parecia conhecer comoções com as
penas alheias, mas não deixava geração e talvez se encantasse com olhos azuis
da menina, talvez lhes encontrasse pedigree na primeira comunhão, vendo bem
poderia ter uma afilhada. Com a maior das clarezas ditou a sua lei:
- Primeiro, casamento!
- Segundo, baptizar a menina de Beatriz, nome da minha mãe
que Deus chamou.
- Terceiro, se a menina se portar bem e for aplicada nos
estudos, providenciarei fazer dela professora, profissão muito adequada a uma
mulher de respeito.
- Quarto, nem pensar em terem mais filhos! Se tal acontecer
vão outra vez para a rua, o mundo é comprido, tratam de desaparecer mais a
gaiata.
Ficaram contentes e aliviados mas logo perceberam que a lei
de Dona Silvina continha mais extensões e clausulas, e que as tiranias são
omnipresentes e omnipotentes como Nosso Senhor. Gil e Mariana dormiam sob o
tecto da lavradora em quartos separados de modo a que não se produzissem
intimidades, ela continuava a servir, ele era moço de recados, ia à cidade
fazer avios de compras levando um seirão de empreita que tornava cheio de
mercearias e comeres. Assim foi envelhecendo, alargando e atarracando, homem
casado sem mulher, alvo da chacota dos outros que o desafiavam a desobedecer à tirania
da soberana do monte, mas Gil só pensava na gaiata, em vê-la professora.
Foi o dia mais lindo da sua vida, a filha, professora de
escola primária.
Gozou-o pouco tempo, no dia seguinte ainda teve tempo de num
relâmpago ver chegar o sonho de Mariana, dizem que muito sonhamos ao chegar ao
último corredor da existência, tudo nos aparece donde ninguém volta para
contar, vinha ela deitada nas palhas da cocheira, tal qual o foi na noite em
que foram homem e mulher e se misturaram uma só vez em vida.
Dona Silvina, tirana e decrépita, pagou um lindo funeral ao
pai da sua afilhada.